Obra sobre prisão impede que leitor tire as próprias conclusões
FOLHA
Ana Paula Maia, nascida em 1977 em Nova Iguaçu, começou a carreira literária em 2003 e publicou seis livros.
Neles encontramos personagens masculinos brutalizados, pouca atenção aos detalhes e às exigências da prosa realista, narradores oniscientes e uso do tempo verbal do presente do indicativo. Além disso, há uma ênfase no enredo ágil. A constância indica um projeto consistente, e em certa medida, consciente.
Em seu último romance, “Assim na Terra Como Embaixo da Terra”, Maia parte do conto “Na Colônia Penal”, de Franz Kafka (1883-1924), para construir a própria versão de um campo prisional.
A colônia do romance é comandada pelo oficial psicopata Melquíades e um único agente, Taborda. Dali ninguém nunca escapou. Dos 42 presos originários, sobraram poucos. Os outros foram executados e enterrados ali mesmo. Trata-se de um campo de extermínio.
“A Justiça está sempre um passo atrás da injustiça”, diz Melquíades. “Eu não estou aqui para julgá-los […] Eu estou aqui para corrigi-los.” A punição, descobrimos mais à frente, está inscrita no frontispício da colônia: “A correção nos torna livres”.
Aqui o romance se constrói em torno do enredo de superação de um dos presos, Bronco Gil, diferentemente do conto de Kafka, em que o que está em primeiro plano é a falência de uma linguagem que sirva aos diferentes personagens, num espaço que é visto com tamanha proximidade que escapa à compreensão geral.
O distanciamento implícito na onisciência do narrador e a manutenção do tempo verbal no presente fazem com que aquilo que começara como um projeto ambicioso — trabalhar um mundo isolado onde seus personagens não tivessem passado ou futuro, numa linhagem que partiria de Kafka para passar por Samuel Beckett (1906-1989) e chegar a J.M. Coetzee —se transforme em apenas um thriller.
Que, diga-se, já tem sua sequência escrita: o final do livro é um prenúncio do que acontecerá em seu romance anterior, “De Gados e Homens” (Record, 2013).
Maia arma um cenário para exibir nossa condição trágica, mas nos entrega uma diluição em chave menor.
Esse é um fenômeno contemporâneo.
Se, para Kafka, não havia esperanças para a humanidade, uma nova geração (não apenas de escritores) parece acreditar na possibilidade de subverter a experiência coletiva em enredos supostamente realistas de superação pessoal.
A estratégia, sabemos, torna a vida mais fácil. Por um lado fingimos não ignorar que o mundo é cruel e que os exemplos de iniquidade são abundantes ao nos expormos aos relatos daquilo que há de pior: guerras, genocídios, diásporas, fome etc.
Por outro, nos contamos histórias com tramas cadenciadas que reforçam a sensação de que, sim, nossa atuação pessoal, e somente ela, é que pode nos livrar do mal.
A pouca complexidade da escrita contribui para a satisfação dessa equação, com abundância de advérbios e caracterizações fáceis, como em “Taborda […] sente-se terrivelmente miserável quando os presos olham para ele com clemência. [...] O sentimento de hierarquia o corrói como um verme”.
Onde se pediria uma cena, o narrador entrega uma interpretação. Retira do leitor a chance de chegar às próprias conclusões e oferece, em troca, a ilusão de compreender esse mundo brutal.
Ao final restam apenas resíduos de um enredo que parece ter sido desenhado para o cinema: um bandido que se torna herói, o facínora que paga por seus erros, o esperto que se safa pisando na cabeça de outro mais burro, o humilhado que morre ainda mais humilhado. Isto é, em vez de alteridade, alienação. ROBERTO TADDEI QUANTO