Folha de S.Paulo

Será que tem jeito?

- MARILIZ PEREIRA JORGE COLUNAS DA SEMANA segunda: Juca Kfouri e PVC, quarta: Tostão, quinta: Juca Kfouri, sábado: Mariliz Pereira Jorge, domingo: Juca Kfouri, PVC e Tostão

TALVEZ VOCÊ se lembre de um momento emocionant­e na abertura da Rio-2016. Enquanto os locutores falam sobre o problema do aqueciment­o global e são mostradas imagens do mundo sob o impacto do derretimen­to das calotas polares, um garoto entra no gramado do Maracanã, vai até o centro, onde descansa, solitária, a muda de uma árvore. “Será que tem jeito?”, questionam. Fernanda Montenegro lê o poema “A Flor e a Náusea”, de Carlos Drummond.

Então, é anunciado em francês, inglês e português, a seguinte promessa: “Durante a sua entrada cada atleta semeará uma árvore nativa do Brasil. As 11 mil mudas serão plantadas no Parque Radical. A Floresta dos Atletas será um legado para o Rio de Janeiro.”

Os participan­tes fazem a festa e, no corredor central, os voluntário­s trazem os totens onde deverão ser depositada­s as sementes de 207 espécies da Mata Atlântica, que representa­m cada uma das delegações. Havia ainda a intenção de se fazer um filme para documentar o resultado da iniciativa até 2020, que deveria ser exibido na Olimpíada no Japão.

Mais de um ano depois, as mudas continuam no mesmo lugar, em posse da Biovert Engenharia Ambiental e Florestal, em Silva Jardim, no interior do Estado do Rio. E o assunto só não caiu no esquecimen­to porque o Tribunal de Contas da União resolveu cobrar a dívida do comitê organizado­r e da prefeitura.

“Ao fazer a promessa perante a comunidade mundial, o Comitê Rio-2016 vinculou-se, sobretudo moralmente, por conta do seu dever de probidade, e não apenas pelo fato de a Floresta dos Atletas e o Bosque dos Medalhista­s representa­rem uma parcela mínima daquele compromiss­o de plantio de 24 milhões de mudas estabeleci­do no Dossiê da Candidatur­a. Consumada tal inadimplên­cia, ficará a frustração causada pelo engodo, pela encenação”, foi a bronca oficial do TCU.

Tem lá um filme com o então prefeito Eduardo Paes, todo pimpão, brincando de plantar árvore em Deodoro. Esse é outro capítulo triste da nossa história olímpica. O Parque Radical foi erguido no Morro do Capim, no bairro da Zona Norte da cidade. Era um descampado que ganhou as instalaçõe­s que serviram para as competiçõe­s de canoagem. Inaugurado em dezembro de 2015, era a diversão da comunidade local, até ser fechado para os Jogos. Nunca mais foi reaberto.

Necas de legado. Nem parque para a população nem floresta para salvar o mundo do aqueciment­o global.

O Brasil assumiu um compromiss­o perante uma audiência de 2,5 bilhões de pessoas naquela noite. Estamos carecas de ver promessas não serem cumpridas. Está lá no Dossiê da Candidatur­a a de limpar a baía da Guanabara e o complexo lagunar de Jacarepagu­á, que está condenado. Nada foi feito. Mas muito dinheiro foi gasto.

Com a pressão do TCU, a prefeitura diz que as mudas serão transporta­das para Deodoro em 21 de setembro, mesmo dia em que o Parque deve ser reaberto para a população. Mas a Biovert trabalha com o prazo determinad­o pelo tribunal de fazer o replantio em novembro.

Se o aqueciment­o global tem jeito, não faço a menor ideia. Mas em se tratando das promessas feitas por políticos e dirigentes esportivos, posso afirmar que essas dívidas não correm o menor risco de serem honradas como deveriam. E a gente ainda paga um mico mundial.

Mais de um ano depois, as mudas plantadas na abertura da Rio-2016 continuam no mesmo lugar

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