Folha de S.Paulo

MINHA HISTÓRIA DANÇAR OU MORRER

Vocação que fez sírio se esconder do pai, temer reação de amigos e ser ameaçado pelo Estado Islâmico mudou sua vida e o levou para a Holanda

- DIOGO BERCITO

Nasci em Damasco, no campo de refugiados de Yarmouk. A família do meu pai é palestina. A da minha mãe vem de Palmira, na Síria.

Quando criança, eu queria ser conhecido como um dançarino. Mas cresci como um refugiado palestino, e era como refugiado que os colegas me conheciam na escola.

Sempre me senti tocado pela música. Aos oito anos, assisti a uma apresentaç­ão de balé das meninas da escola e me mexi no assento.

Pulava ao redor da casa. Mas eu dançava sozinho, escondido, com medo de que meu pai me visse. Não queria que ninguém soubesse. É difícil ser um dançarino, numa sociedade conservado­ra.

Já minha mãe, professora de ensino fundamenta­l, me estimulava a dançar e me ensinava a me alongar. Dizia “veja, este daí sabe dançar”.

Naquela época, eu não era velho o bastante para sair do campo de refugiados e ir so- zinho ao centro de Damasco para estudar.

Mas, aos 16 anos, entrei para a academia de dança Enana, onde misturávam­os o balé tradiciona­l às danças locais, como o dabke, um gênero árabe.

Só em 2014, aos 24 anos, contei aos amigos que sabia dançar. Foi quando eu participei da versão árabe do programa de TV “So You Think You Can Dance” (“Então você acha que pode dançar”, espécie de “Ídolos” da dança).

Foi um grande passo. Foi minha primeira vez dançando para as câmeras, diante de jurados internacio­nais, mas acho que me saí muito bem.

Nessa mesma época, a milícia terrorista Estado Islâmico começou a me ameaçar. Eles conseguira­m hackear minha conta de Facebook e publicaram meu retrato, escrito “procurado”.

Mandavam mensagens, e chegaram a conseguir o meu número de telefone. Diziamme coisas como “nos espere na sua casa”, “nós vamos atirar nas suas pernas”, “vamos cortar a sua cabeça”.

Terrorista­s, como os do Estado Islâmico, acham que o que eu faço, dançando e dando aula de dança para crianças, é uma coisa de infiel.

Querem destruir nossa cultura, nossa história, em nome da religião deles —que não sei qual é, mas não é o nosso islã. É outra coisa.

Fiz uma reclamação à polícia, mas ninguém se importou. Então fui a um tatuador e pedi que escrevesse “dance ou morra” atrás do meu pescoço, exatamente onde eles me cortariam.

E nunca me senti assustado. Disse: “Tudo bem, venham e me matem”.

Eu vivia perto deles. Em Yarmouk, havia dois quarteirõe­s entre o Estado Islâmico e eu. Se quisessem, teriam me matado. Mesmo quando atiravam em mim, miravam do lado. Não sei por quê.

Nesses anos, vivíamos em uma tenda, porque nossa casa tinha desmoronad­o dois anos antes por um ataque a bomba. Sete dos meus tios moravam no mesmo prédio, e ficamos todos sem casa.

Depois do programa de TV, um cineasta holandês me procurou pela internet e quis gravar um documentár­io sobre a minha vida.

Eu a princípio não quis, porque não queria me abrir. Essa minha vida era quase como um segredo.

Pensei por um mês e meio, e ao mesmo tempo se aproximava a hora de entrar para o Exército, onde eu sabia que ia morrer. Então eu lhe disse que sim. Pensei que eu faria aquilo e depois morreria de qualquer maneira.

Mas o diretor de uma companhia de dança holandesa assistiu ao documentár­io e me buscou. Disse que queria que eu dançasse para ele. Falei que seria impossível. Eu nem tinha um passaporte! Mas ele prometeu resolver, e me deram o visto.

Eu me senti muito culpado por ter deixado minha família.Nãoqueriai­rembora,mas minha mãe —tão forte— não me deu escolha. Ela me disse que era meu sonho e que eu precisava realizá-lo.

Falamos ontem mesmo ao telefone, na celebração do Eid, um feriado religioso islâmico. Cantei para ela. Ela chora do outro lado, tenta fazer que eu não perceba.

Como você quer que eu me sinta? Estou nesta casa linda, na Holanda, enquanto minha mãe segue na mesma vida na Síria. Eu envio dinheiro a eles, mas você não pode comprar a segurança.

Cheguei a Amsterdã há 11 meses e ainda não pude me adaptar. Tudo aqui é tão livre, enquanto era tão fechado no meu país. Esse processo me toma bastante energia.

A dança me ajuda a mergulhar dentro de mim mesmo e consertar essas emoções. Quando eu as compartilh­o com outras pessoas, se tornam mais suaves. É uma maneira de me curar. Eu me sinto tão forte, tão livre.

Tenho um orgulho imenso do que eu fiz. Tenho orgulho de que agora todas as pessoas me conhecem, sim, como um dançarino.

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Ahmad Joudeh se apresenta com seu grupo em Paris

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