Folha de S.Paulo

Uma diz. A outra desdiz

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RIO DE JANEIRO - Os sites de curiosidad­es que abundam online celebraram outro dia os 20 anos de Janus, uma tartaruga residente na Suíça. Até aí, nada demais, e nem os 20 anos de uma tartaruga são notícia —sabe-se de algumas que chegaram a quase 200, como a famosa Harriet, que já era adulta quando foi estudada pessoalmen­te por Charles Darwin para seu livro “A Origem das Espécies”, de 1859, e só morreu em 2006. Mas Janus tem uma caracterís­tica: é uma tartaruga de duas cabeças.

Tartarugas de duas cabeças também não são incomuns. Às vezes nasce uma delas, dizem que por má separação dos embriões. Só que, em seu habitat natural, têm vida curta porque, como costumam ter também seis patas, movem-se com dificuldad­e e são presa fácil de predadores. Mas Janus está a salvo: seu lar é o Museu de História Natural de Genebra, onde lhe fazem todas as vontades e passam o dia alimentand­o-a com folhas verdes e deliciosas. O nome Janus é o do deus romano de duas faces —uma virada para a frente, outra, para trás—, que lhe permitem ver o presente e o passado e cuidar das mudanças e transições.

Ao ler isto, não pude deixar de pensar em Michel Temer. Ele também parece ter duas cabeças. Uma diz uma coisa e a outra, em seguida, volta atrás e desdiz. Nas tartarugas, isso não altera a ordem das coisas, mas não fica bem em presidente­s. E tem sido assim desde o começo de seu governo —promessas que não se cumprem, decisões que se revelam desastrosa­s e são abandonada­s e uma formidável capacidade de fazer de conta que esse vai-não-vai levará o país a algum lugar.

A exemplo de Janus —o deus, não a tartaruga—, Temer devia estar cuidando das mudanças e transições. Pois esqueça. E, assim como Janus —a tartaruga, não o deus—, dizem que ele também gosta de folhas verdes.

Nesse caso, não esqueça.

Por convenção —utilizada, inclusive, pelo Comitê de Datação de Ciclos Econômicos (Codace, da FGV)—, dois trimestres consecutiv­os de cresciment­o positivo marcam o fim de uma recessão. A Codace determinou que a que vivemos iniciou-se em nos segundo trimestre de 2014.

Mesmo os que têm má vontade com o governo Temer, por motivos ideológico­s ou por motivos éticos, já não poderão negar que a situação econômica melhorou desde o segundo trimestre de 2016, quando ele tomou posse, a despeito da tragédia hiperpremi­ada da delação da JBS. Os números parecem dar fôlego a um cresciment­o do PIB em 2017 maior do que o consenso atual, talvez 0,8%.

Os mau humorados dirão que isso não passa de uma ilusão causada pelo aumento do “consumo” das famílias, e não do “investimen­to”. E têm alguma razão. O problema é que estarão aprovando a política econômica de Temer, que fez o que estava ao seu alcance! Estimulou o consumo com a distribuiç­ão de R$ 44 bilhões do FGTS, com a redução da inflação aumentou o poder de compra, e houve ligeira recuperaçã­o do emprego.

É realmente preocupant­e a continuada redução da Formação Bruta de Capital Fixo, o “investimen­to” com relação ao PIB, que caiu de 27% no segundo trimestre de 2012 para 22% do PIB no início da recessão e, depois, para 16% no segundo trimestre de 2017, quando ela terminou.

A aceleração do cresciment­o depende de dois fatores: o investimen­to e a exportação. O primeiro é função, basicament­e, das “expectativ­as” do próprio cresciment­o, do uso da capacidade ociosa da indústria e de condições objetivas, como crédito a juro menor do que a taxa de retorno.

O segundo, da expansão da economia mundial e de cuidadosa vigilância da taxa de câmbio real, que o largo diferencia­l de juro interno e externo transforma num ativo financeiro que nada tem a ver com a economia real. Mas tudo será inútil enquanto não pegarmos “pelos cornos” a reforma da Previdênci­a... ANTONIO DELFIM NETTO

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