Folha de S.Paulo

Recentemen­te, um dos

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Mal as enfermeira­s do hospital se aproximava­m de Gustavo, de 3 anos, e o menino alertava: “O Senhor é meu pastor e nada me faltará”. Elas tremiam nas bases. Algumas choravam para tirar sangue do garoto. “Ele já estava com veias estouradas no pescoço e nos braços, não tinha mais onde furar. Ele ficava com medo e começava o salmo”, conta a mãe.

Filho de pastores evangélico­s, Luiz Gustavo Ramos foi atingido na barriga em uma troca de tiros na Vila Nhocuné, zona leste de São Paulo, no início de agosto. Foi levado para o hospital e operado. Perdeu mais de um metro de intestino e, depois de duas semanas, voltou para casa.

O menino foi baleado na véspera do seu aniversári­o de três anos, na rua de casa, minutos depois de sair para uma volta com o pai, Luiz Ramos, 50. Aficionado por máquinas, Gustavo pediu para ver os caminhões na loja de materiais de construção da esquina. O passeio era um hábito dos dois. “Vamos ver as páquitas”, dizia o menino, se referindo às máquinas.

Em casa, o clima era de festa. A tia preparava o bolo de aniversári­o, a mãe cozinhava o almoço de domingo. “Nunca me esqueço. Disse que a comida estaria pronta em 15 minutos”, conta Claudia Marques, 45, mãe de Gustavo.

A festa surpresa seria no dia seguinte, quando o menino voltasse da escola. “A gente ia pendurar bexigas, coisa simples. Só para ver a carinha de felicidade dele”, diz a mãe.

Enquanto Claudia esquentava a comida no fogão, Gustavo e seu pai caminhavam em direção à loja. Antes de chegarem à esquina, um motoqueiro entrou na rua. Ele fugia de uma tentativa de assalto. “Já vieram atirando”, lembra Luiz, que se agachou na calçada e jogou Gustavo para baixo de um carro.

Segundo o boletim de ocorrência policial, três ladrões em duas motos tentaram assaltar outro motoqueiro, mas um PM de folga viu a ação e trocou tiros com os criminosos.

No meio do tiroteio, Gustavo gritava pelo pai. Quando as motos passaram, Luiz se levantou e pegou o filho no colo. Perguntou se ele estava machucado, e Gustavo respondeu que não. Olhou as costas do menino. Nada. “Mas, quando virei o Gu de barriga para cima, as vísceras dele já estavam... para fora”, conta Luiz, abaixando o volume da voz para que o filho, brincando no chão com um boneco, não o escutasse. SOCORRO Com o menino nos braços, Luiz correu em busca de ajuda. O PM viu os dois, parou o carro e os levou para o hospital. A cena foi registrada por câmeras de segurança, e as imagens do pai desesperad­o com o filho no colo foram parar no noticiário das TVs.

De casa, a mãe ouviu o barulho e pensou: “Deus guarde o meu filho”. Afastou o pensamento ruim e voltou às panelas. A família mora em um quarto e uma sala improvisad­os nos fundos de uma casa, da mãe de Luiz. Vivem da venda de trufas e salgados nos cultos, já que o trabalho como pastor é voluntário.

A tia de Gustavo, que também mora na casa, foi quem deu a notícia a Claudia. “Desliga tudo, senta. O Gustavo... foi atropelado por uma moto”. Claudia quis correr, rezar, chorar, tudo ao mesmo tempo. Desmaiou, mas não se lembra como. Foi só no hospital que ela entendeu o que tinha acontecido. “Lá o Luiz me contou: ‘Claudia, fica calma, ele tomou um tiro’. Nossa... eu perdi o chão.” SEM RESPOSTAS Segundo o delegado responsáve­l pelo caso, José Claudio de Freitas, nenhum suspeito foi identifica­do, e o laudo de balística, que pode determinar se o tiro que atingiu Gustavo veio do policial ou dos assaltante­s, ainda não foi concluído. O PM diz que os criminosos atiraram primeiro, e ele reagiu. Os assaltante­s conseguira­m fugir. A festa de Gustavo, que seria no dia seguinte, ficou para o ano que vem.

“A gente ia comprar um poster da ‘Patrulha Canina’ para a festa, sabe? Não? O desenho animado...”, explica o pai. O menino interrompe a conversa: “Você não sabe o que é a ‘Patrulha Canina’?”, pergunta ele, incrédulo. Derruba uma caixa de brinqueco CIDADE PATRIARCA VILA NHOCUNÉ av. Águia de Haia Local onde Gustavo, 3, foi baleado av. Itaquera dos no chão e busca um cachorrinh­o vestido de operário. “Olha, é esse aqui!”, mostra. Como Gustavo gosta de tudo no universo da construção, o cão-operário é um dos personagen­s preferidos dele. ‘PONTINHOS’ Imperador av. do Shopping Metrô Itaquera Arena Corinthian­s ARTUR ALVIM av.Líder funcionári­os da loja soube da paixão do menino e parou com um caminhão, cheio de areia, na porta da casa. “Ô, campeão, quando você ficar melhor eu vou levar você para dar uma volta”, disse o motorista. “Nossa, ele ficou todo contente”, afirma o pai.

A última quarta-feira (30), no entanto, foi um dia difícil para Gustavo. Ele precisou voltar ao hospital, para tirar os pontos. Na cabeça do menino, só a mãe podia tocar “nos pontinhos” —ele tem medo que a ferida abra de novo.

“Ele ficou com pavor de hospital, sofreu muito lá. Já chegou chorando. O psicológi- dele está meio assim…”, diz o pai. Além do ambiente hospitalar, Gustavo também desenvolve­u medo de motos. O barulho o assusta. “Ele viu tudo, ficou consciente o tempo todo. Nós temos um psicólogo lá em cima, mas vamos procurar um aqui na Terra também, ele vai precisar”, disse a mãe.

Mesmo após um dia cansativo no hospital, Gustavo saiu da cama e apareceu na sala ao notar que tinha alguém diferente em casa. Colocou música no celular, mostrou uma foto sua vestido de caipira e apresentou os brinquedos: “O Hulk, o Hulkiiiiii­ii!”.

“Ele gosta de se mostrar. É carismátic­o, alegre. Mas também é genioso, bravo. Ele sabe que é o caçula, o xodó, então ele manda, faz conforme quer”, descreve o pai. Gustavo ainda não pôde voltar para a escola. Os médicos acham que a brincadeir­a com outras crianças ou uma pequena queda podem ser perigosas.

Enquanto ficou no hospital, Gustavo costumava gritar: “Papai do céu, me ajuda!”, para desespero das enfermeira­s.

A mãe precisou contar para ele sobre o tiroteio e garantir que não ia acontecer de novo. Para dormir no hospital, Gustavo pedia para a mãe cantar uma música religiosa. “Pecado”, ele completa, atento à conversa. A letra fala de “se levantar, quando o mundo te fizer cair”, diz Claudia.

“O tempo no hospital foi uma regressão, o Gu voltou a usar fraldas e precisou reaprender a andar”, conta ela.

Hoje o menino já corre de um lado para o outro. Ele aponta para o fotógrafo da Folha e avisa: “Mamãe, vou chutar bola lá fora com ele, tá?”.

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200 m

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