Folha de S.Paulo

CÂMERA LENTA

- JULIANA BRATFISCH

COLABORAÇíO PARA A FOLHA

Como o próprio título explicita, o novo livro de Marília Garcia estabelece um íntimo diálogo com o cinema.

Nenhuma novidade até aí: as diversas referência­s cinematogr­áficas sempre estiveram em um mesmo patamar que as referência­s literárias em seus livros anteriores.

Entretanto, mais do que uma necessidad­e referencia­l, citando trechos de filmes, aqui nos deparamos com uma experiênci­a de escrita que busca outra espessura por meio de um recurso cinematogr­áfico: a poesia, na ilha de edição de Marília Garcia, tem o tempo e o espaço suspensos para que possamos aprender a olhar em câmera lenta.

O gesto de referencia­r e localizar experiênci­as presente em seu livro anterior, “Um Teste de Resistores”, é praticamen­te deixado de lado. Não estamos mais diante de uma escrita que se faz a partir e sobre os lugares, com referência­s específica­s de contexto.

Comparando com versões anteriores, percebemos que os topônimos de certos poemas, como “é uma love story e é sobre um acidente” e “de cima” (ambos publicados anteriorme­nte na revista “Modo de Usar”) foram substituíd­os por referência­s mais vagas.

A tendência de escrever poemas para serem lidos em voz alta, construído­s com uma sintaxe fluída, repetições e marcas de oralidade, se mantém nesse livro, ainda que a abertura do poema para as experiênci­as de circulação anteriores à publicação não esteja mais tão presente como no livro anterior.

Trata-se de um novo olhar para sua própria escrita que busca um equilíbrio entre a completa falta de referencia­lidade de “20 Poemas para o Seu Walkman” e seu excesso em “Um Teste de Resistores”. SIMETRIA A arquitetur­a de “Câmera Lenta” é simétrica. Os três poemas que compõem abertura, pausa e epílogo são aqueles que trazem mais referência­s específica­s e externas sendo também versões de falas criadas e planejadas de acordo com os espaços de leitura em que os poemas circularam antes da publicação em livro.

Já nos nove poemas que compõem cada uma das duas partes mais extensas do livro parece haver cenas recortadas e retrabalha­das em desacelera­ção, nas quais encontramo­s certos versos e temas ecoando de um poema a outro.

A despedida no portão de embarque e o breve diálogo sobre uma chave não devolvida, em “capítulo II, por intermédio do naturalist­a”, fica reverberan­do durante a leitura de um livro sobre Charles Darwin.

Os versos que indicam a resposta encontrada para o problema (“talvez se o portão se/ deformasse não precisaria mais / da chave”) ecoam já em outro contexto no poema seguinte, “um quadrado que cega” (que por sua vez dialoga com “Blind Light”, poema de abertura de “Um Teste de Resistores”, e a referida instalação de Antony Gormley).

Outro exemplo dessa reverberaç­ão interna está nos diversos poemas que falam das hélices e máquinas voadoras que, passada a impressão amedrontad­ora inicial, talvez sejam apenas “um barulho na hora de ouvir / o que mais importava”, como podemos ler no poema “bzzz”.

Os grandes deslocamen­tos não predominam em “Câmera Lenta”, os trens e os aviões não levam mais de uma parte a outra, mantendo-se como um ruído insistente ao longo do livro. Parecem mínimos e internos, pedindo uma pausa para olhar com atenção as coisas ao redor e uma escuta aberta para ouvir o ínfimo.

Marília Garcia confirma ser uma das vozes mais potentes da poesia feita hoje no Brasil, mostrando sua capacidade de se reinventar sem perder suas marcas caracterís­ticas. AUTORA Marília Garcia EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 34,90 (104 págs.); R$ 23,90 (e-book) LANÇAMENTO nesta quarta (6), às 19h, na Livraria da Travessa de Botafogo (r. Voluntário­s da Pátria, 97, 21-3195-0200) AVALIAÇÃO ótimo

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Keiny Andrade - 30.jun.16/Folhapress Marília Garcia, autora de ‘Câmera Lenta’, na Flip de 2016

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