Folha de S.Paulo

Supremo vício

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O último áudio de Joesley Batista é a melhor ilustração disponível até o momento sobre o funcioname­nto de partes do Judiciário em nossa democracia.

Desesperad­o para obter um acordo de delação premiada junto ao procurador-geral da República, o empresário narra os detalhes de sua estratégia: bastaria mobilizar os serviços de um ex-ministro da Justiça detentor de informaçõe­s privilegia­das sobre os vícios escusos dos membros da suprema corte para pôr o Judiciário contra a parede. “Temos de ser a tampa do caixão”, vaticina o campeão nacional.

Como ocorre quando uma omertà é desestrutu­rada, a estratégia de sobrevivên­cia dos mafiosos é partir para o tudo ou nada, uns contra os outros.

Em seu monólogo, Joesley detalha aquilo que o país vem aprendendo desde o escândalo do mensalão, há uma década. Na cúpula do Judiciário, podem valer regras que não são necessaria­mente as de independên­cia e imparciali­dade, mas de representa­ção de interesses, de costura de acordos com a classe política e empresaria­l e de falta geral de accountabi­lity (a obrigação que, numa democracia, as autoridade­s têm de prestar contas a instâncias efetivas de controle). Em suma, os áudios revelam bolsões no Judiciário de práticas típicas dos sistemas de Justiça de regimes não democrátic­os.

A pergunta é simples: como se explica que, depois de 30 anos de avanços institucio­nais, a cúpula da Justiça ainda conviva com tamanho entulho autoritári­o?

Parte da resposta está nos poderes desmedidos do presidente da República em nosso sistema político. Em nossa experiênci­a democrátic­a, nunca uma indicação do Palácio do Planalto para o STF foi vetada pelo Legislativ­o. Nunca tal indicação foi submetida ao teste do conflito de interesses.

O resultado é uma Corte Suprema na qual existe a possibilid­ade de ministros tirarem vantagem monetária do cargo que ocupam por meio de negócios paralelos ou pela capacidade de alavancar familiares para posições de influência, no Estado ou no setor privado. Em tal cenário, há também espaço para ministros que atuam em favor de ex-clientes ou em nome das forças políticas e empresaria­is das quais dependem para manter vivas suas redes clientelis­tas e de patronagem.

Nesse sistema, a presença, na corte suprema, de ministros capazes de manter viva a chama da República não é garantida. Depende mais da convicção pessoal e do compromiss­o moral de indivíduos virtuosos do que da força das regras do jogo.

A grave crise que abala a vida pública brasileira demanda reforma profunda. Ajustes pontuais, nas margens, não resolverão o drama central de um sistema de governo que se descolou da sociedade que paga a conta.

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