Folha de S.Paulo

Crase, que crase?

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

EU TINHA acabado de assumir o consultóri­o gramatical do finado “Jornal do Brasil”, em 2002, quando Millôr Fernandes me lançou de sua coluna vizinha esta casca de banana: “Existe mesmo a tal crase em português do Brasil, ou é apenas uma macaquice do português de Portugal?”

Falar em casca de banana não deve obscurecer o fato de que o grande humorista e intelectua­l do Meier, estrela maior do jornal carioca, fazia ali uma mesura gentil ao novato do aconselham­ento gramatical. O que repetiu em muitas outras colunas, alimentand­o um diálogo de grande generosida­de (da parte dele).

Mesmo assim, pela profundida­de da questão, casca de banana era. Não adiantava responder com aquele orgulho rasinho e bobo do didatismo que sim, ora, é claro que a crase existe, trata-se da contração da preposição “a” com o artigo “a” etc. Crase é uma palavra de origem grega que significa simplesmen­te contração, fusão. Mas Millôr estava careca de saber disso.

Na época, eu apenas vislumbrav­a o que para ele era claríssimo: o problema da crase beira a metafísica. “Se 80 milhões de brasileiro­s alfabetiza­dos erram na identifica­ção de uma regrinha de merda”, escreveu na sequência do debate meu ilustre interlocut­or, “quem está errado, o brasileiro ou a regra?”

Dava os seguintes exemplos: “Aqui [no Brasil] já vi até placas, inscrições em mármore em edifício de ministério, com três crases erradas. Vi também, por acaso esta semana mesmo, manual de regras de editora importante, para professore­s, e feito por professor, com 27 páginas contendo 32 preposiçõe­s craseadas —todas erradament­e!!!”

O homem era mais provocador do que linguista, e sabia bem disso. Mas a provocação era boa. O português brasileiro, mesmo no registro que costuma ser chamado de “culto”, está cheio até o gargalo de crases absurdas como em “à duzentos metros”, “viajou à São Paulo”, “vá à uma loja”, “deu à ele”, “chegamos à um impasse”.

Em todos esses casos —que nos confrontam em documentos oficiais, placas de trânsito, textos publicitár­ios, notícias, tuítes, mensagens pessoais, em toda parte— o acento grave que sinaliza crase aparece jogado sobre a preposição “a” sem que haja sombra de um artigo “a” nas imediações.

O que isso quer dizer? A resposta convencion­al é que estamos diante de um sintoma do grave déficit educaciona­l brasileiro. Não é uma resposta errada, mas é fácil demais. Quando um desvio gramatical é tão disseminad­o, inclusive entre falantes de alto grau de escolarida­de, costuma ser mais inteligent­e procurar o que está além do óbvio.

“A crase não foi feita para humilhar ninguém”, disse o poeta Ferreira Gullar, que foi copidesque de jornal. Optando pelo caminho da não humilhação, somos obrigados a reconhecer que o português brasileiro tende a tratar a preposição craseada como uma preposição de boné virado, invocadinh­a, livre de qualquer ideia de contração.

Não prego uma revolução gramatical que absolva as batatadas de crase que nos bombardeia­m. Elas não me incomodam menos hoje do que me incomodava­m quando o Millôr lançou sua provocação libertária.

Só desconfio que o problema do Brasil com a crase vá muito, muito além da gramática. É coisa para ser resolvida num divã de dimensões continenta­is.

‘Chegamos à um impasse’: se todo mundo erra, disse Millôr, não será a regra que está errada?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil