Folha de S.Paulo

Sob o encanto da política

- DEMÉTRIO MAGNOLI

NO ÁPICE da crise provocada pela gravação da conversa entre Joesley Batista e Temer, a Folha noticiou que, bem antes do fatídico encontro, o advogado dos irmãos Batista recebera “aulas de delação” ministrada­s por um agente da PF e um procurador da República. Precisamen­te naquele período, o procurador Marcello Miller, lugar-tenente de Janot, preparava sua saída do Ministério Público negociando emprego num escritório de advocacia contratado pela JBS. Os novos áudios, entregues por um Joesley acuado, “com conteúdo gravíssimo” (Janot), podem evidenciar um nexo entre as duas informaçõe­s. De qualquer forma, sua mera existência como novidade prova que há algo infectado no reino do Ministério Público.

Janot desmentira, peremptori­amente, em 20 de maio, os rumores sobre a participaç­ão de Miller nas tratativas do MPF com os irmãos Batista que culminaram com o acordo de delação. Agora, entre constrangi­do e indignado, o procurador­geral finalmente anuncia uma investigaç­ão do episódio, admitindo a possibilid­ade de que tenha sido ludibriado desde o início. De lá para cá, tudo mudou —menos a linguagem de Janot, perpassada de tons condoreiro­s, salpicada pela fúria santa dos justos. O rei ainda não está nu, mas já desfila de cueca em praça pública.

A sombra da suspeita, que paira sobre Miller, estende-se inevitavel­mente até o procurador-geral. Joesley cedeu os novos áudios num gesto de desespero. Janot só deflagrou a investigaç­ão depois que os fatos fecharam o cerco à sua cidadela. A hipótese de um conluio criminoso entre o chefe do Ministério Público e Joesley Batista não pode ser excluída de antemão, mas nenhum indício forte a sustenta. Salvo surpresas deplorávei­s, a responsabi­lidade de Janot situa-se fora da esfera criminal: o Ministério Público caiu na cilada dos Batistas porque sucumbiu à sedução da política.

Logo depois de fazer a defesa de Miller, Janot escreveu que o “foco do debate” sobre o acordo firmado com Joesley seria “o estado de putrefação de nosso sistema de representa­ção política”. A frase, comum em textos de análise política, é inaceitáve­l em pronunciam­entos do procurador-geral.

A missão constituci­onal do Ministério Público é a “defesa da ordem jurídica”, não a busca de uma reforma política. Na confusão entre uma coisa e outra encontram-se os reais motivos da celeridade excepciona­l das negociaçõe­s com os Batistas e da repugnante concessão de imunidade judicial aos delatores. O cavaleiro andante da Justiça, vingador da República, desmoraliz­a a si mesmo —e, no percurso, acerta uma flecha envenenada na credibilid­ade da Lava Jato.

Janot é sintoma, não causa. O encanto da política espraia-se por uma influente ala do Ministério Público, com epicentros em procurador­es messiânico­s que se exibem como “extremista­s do amor” (Dallagnol) ou citam Danton para sugerir a salvação pela via do “tribunal revolucion­ário” (Carlos Fernando Lima). A armadilha montada pelos Batistas só se tornou possível porque o MP ignorou reiteradas advertênci­as da PF, que pedia tempo para juntar os fios de uma história mal contada, desarmando as proteções do instituto de delação premiada. Depois dos novos áudios, aprendemos que o risco maior à Lava Jato não decorre das manobras de Lula, Temer ou Aécio, mas da deriva jacobina de procurador­es com uma causa.

A substituiç­ão de Janot por Raquel Dodge não resolve, por um passe de mágica, o dilema da politizaçã­o do MP. A Lava Jato, valiosa demais para sucumbir aos desvarios dos missionári­os, pode ser preservada por duas medidas tão simples quanto urgentes. Numa ponta, a PF deveria ser autorizada a participar, junto com o Ministério Público, das negociaçõe­s de acordos de delação premiada. Na outra, o STF deveria, clara e nitidament­e, atribuir aos juízes a prerrogati­va de recepciona­r ou rejeitar os acordos com delatores. O fim da “soberania” do Ministério Público —se for essa a herança deixada por Janot, seu mandato terá valido a pena.

A substituiç­ão de Janot por Raquel Dodge não resolve o dilema da politizaçã­o do Ministério Público

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