Folha de S.Paulo

Traumas e finanças pessoais

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SE HÁ algo no qual brasileiro­s e chineses são idênticos, é no desconheci­mento de estratégia­s eficientes de finanças pessoais.

No caso brasileiro, ainda estamos presos no modelo mental do passado hiperinfla­cionário. Na China, o trauma é muito mais profundo, pois a Grande Fome, fruto de políticas desastrosa­s do governo de Mao TséTung, matou entre 20 milhões e 40 milhões de pessoas entre 1959 e 1961.

Em países que saem da pobreza em relativame­nte pouco tempo e no qual as pessoas são traumatiza­das, é difícil que todos passem a tomar decisões racionais de finanças rapidament­e. O processo de educação financeira é longo e, no meio do caminho, várias ideias erradas se tornam normais. Duas ideias ruins em ambos os países são o desprezo por liquidez e diversific­ação.

Uma vez entreviste­i um milionário na cidade de Ningbo. Toda a sua fortuna encontrava-se em imóveis espalhados pela cidade. Ele não tinha nenhum outro investimen­to. Perguntei se ele não tinha medo de o preço dos imóveis despencar. Ele falou que não, que o governo chinês não deixaria isso acontecer. Haja vista que as autoridade­s públicas interviera­m no mercado acionário em 2015, não é de surpreende­r que as pessoas se fiem no governo como garantidor de retornos financeiro­s. Mas no final das contas não faz muito sentido traçar estratégia­s de longo prazo no qual o governo garanta retorno em caso de queda elevada de rendimento­s.

Não há bolha imobiliári­a na China hoje, assim como não havia no Brasil. Para que uma bolha financeira se caracteriz­e, é necessário que agentes se alavanquem e que o estouro deixe indivíduos e empresas a descoberto. Na China e no Brasil, a maior parte das aquisições de imóveis é feita com boa parte da entrada em dinheiro, com o financiame­nto de longo prazo encontrand­o respaldo no valor dos imóveis ao longo do tempo. Ainda assim, o amor ao tijolo tanto de lá quanto de cá tem um quê de irracional­idade.

Um dos problemas das famílias chinesas é como se planejar para o longo prazo, já que elas entraram no sistema capitalist­a há pouco, vêm de eventos traumático­s há menos de duas gerações, como a Grande Fome, que matou dezenas de milhões no fim dos anos 1950, e o mercado financeiro não apresenta a mesma diversidad­e de opções como no Brasil, onde é possível comprar títulos do governo com poucos cliques.

Como fazer? Não há fórmula mágica. Planejamen­to de longo prazo, em finanças, significa montar uma carteira diversific­ada na qual investimen­tos líquidos (e de retorno mais baixo) convivem com investimen­tos especulati­vos, como ações e imóveis. Lá, como aqui, muitas pessoas entram em modismos de investimen­tos e perdem todas as suas posses. Conheço famílias que venderam seus imóveis para colocar o dinheiro no mercado acionário. Muitos brasileiro­s também fizeram isso para investir em empresas como Petrobras e as do grupo X.

Uma das perguntas básicas que se deve fazer para entender finanças pessoais é: qual o padrão para uma vida financeira ideal? A resposta para essa pergunta depende de três fatores: padrão de renda, padrão de gastos e grau de aversão ao risco. A ideia principal é que um indivíduo

Na China e no Brasil, o 1º passo para o planejamen­to correto é olhar para o futuro, e não para o passado

deve viver bem durante toda a sua vida. Em um mundo financeiro ideal, as pessoas conseguiri­am assumir compromiss­os financeiro­s de longo prazo de acordo com suas perspectiv­as de renda e seus perfis de risco. Isso é difícil de ser feito no Brasil em razão da falta de crédito de longo prazo ao consumidor. Um dos pontos importante­s é definir qual o padrão adequado às expectativ­as futuras de renda. Mas qual o padrão de renda permanente de um indivíduo?

O ciclo financeiro ideal de indivíduo é composto de três períodos: um período no qual há mais gastos que ganhos e, portanto, deve-se fazer dívidas (sim, essa noção é estranha para muitas pessoas); aquele no qual o aumento da renda faz com que seja possível a acumulação de recursos; e, por fim, o período no qual deve haver o aproveitam­ento dos recursos acumulados, por meio de gastos maiores que a renda.

Esse ciclo é bastante comum em diversos países, mas no Brasil e na China ainda existe uma forte tendência a considerar que somente poupar importa, que dívidas são ruins e que todo o dinheiro acumulado deve ser entregue às gerações futuras. Existe uma grande busca por segurança ao mesmo tempo em que a sociedade brasileira se ressente de falta de crédito (e do seu custo, pois afinal temos a maior taxa de juros ao consumidor do mundo).

A vida financeira ideal de uma família seria aquela na qual ela manteria o mesmo padrão durante toda a vida. Caso seguíssemo­s o padrão normal do ditado popular de que devemos viver de acordo com nossos meios, pouparíamo­s pouco e mal. Embora a estratégia financeira ideal de três momentos —no primeiro se ganha menos do que se gasta, no segundo a renda é maior que as despesas e, no final, volta-se a gastar acima da renda pelo desinvesti­mento do patrimônio acumulado— seja a correta, é praticamen­te impossível de ser colocada em prática na China e no Brasil.

Em ambos os países os traumas passados, a falta (ou excesso) de confiança e a incapacida­de de se planejar para décadas na frente são o normal.

Na China, as pessoas se preparam de verdade para o longo prazo, mas não necessaria­mente da melhor maneira. Aqui, as pessoas põem dinheiro na poupança e em títulos de capitaliza­ção, produtos que não deveriam existir num contexto no qual títulos como o Tesouro Selic apresentam maior rendimento, sem desvantage­m em relação a muitos investimen­tos financeiro­s populares.

Planejamen­to financeiro já é algo difícil. Em países de renda média nos quais o medo do (des)governo é palpável, tudo se torna ainda mais complicado. Tanto na China como no Brasil, o primeiro passo para o planejamen­to correto é olhar para o futuro, e não para o passado. RODRIGO ZEIDAN

Folha

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Andy Wong - 18.jul.17/Associated Press Pedestres passam à frente de cartaz com cifrões em banco em Pequim

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