Folha de S.Paulo

Com realismo sádico e lirismo sórdido, obra retrata quinteto que vive na sarjeta

- MANUEL DA COSTA PINTO

FOLHA

Nau dos indigentes que replica a nau dos insensatos, tendo a bordo não os loucos (eternizado­s no quadro de Bosch) que navegavam os rios do imaginário medieval, mas um cortejo de “náufragos do asfalto” à altura dos pesadelos boschianos.

Assim é “Nunca Houve Tanto Fim como Agora”, novo romance de Evandro Affonso Ferreira. Com realismo sádico e lirismo sórdido, destilado dos miasmas urbanos, o mineiro de Araxá sintetiza as linhas de força de sua literatura.

O livro é narrado por Seleno, ex-menino de rua que, agora na pele de um modesto professor, relembra em parágrafos breves as andanças de uma farândola de funâmbulos. Trocando em miúdos, um quinteto de enjeitados sociais e existencia­is que se equilibram no meio-fio das sarjetas, sob marquises e viadutos.

Do tal quinteto só conhecerem­os três personagen­s: Eurídice (sarcástica ninfa do esgoto), Ismênio (de sensibilid­ade e clarividên­cia suicidas) e o narrador. Os outros dois não são nomeados —e talvez por isso sejam mais reais que seus duplos de nomes mitológico­s.

Afinal, todos eles são ainda menos do que os “ex-homens” de Gorki, vagabundos despencado­s na ralé russa. Em nosso sistemaesc­ravagista(quesuperou com galhardia e longevidad­e a servidão czarista), já morreram na partida: roubam fotos em jazigos para compor genealogia­s vicárias, mas nem sequer sabem quando nasceram.

“Desdém generaliza­do é aniquilame­nto implacável”, diz o narrador. Para os maltrapilh­os fedorentos, é a indiferenç­a que os torna invisíveis.

Ao criar essa fauna remelenta, Ferreira combina procedimen­to de livros anteriores. De “Erefuê” ou “Catrâmbias!”, a exumação de palavras vetustas, caídas em desuso, para exprimir a degeneresc­ência em vida de seus desvalidos —como ao descrever seus indigentes mirins como “zumbis zuruós, zoropitós”.

E, de “Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus” ou “O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam”, um adensament­o do fôlego narrativo ao compor a litania de seus fracassado­s, sempre tendo como subtexto referência­s mitico-literárias.

A diferença é que o descompass­o (caracterís­tico da obra pregressa do escritor) entre o universo capenga das personagen­s e citações eruditas se explicita como jogo ficcional nas últimas cinco linhas do livro — torneio estilístic­o que esbofeteia o leitor ao sugerir que nos faltaaempa­tiadonarra­dorcom o “abandono épico” que produziu esse romance notável. QUANDO Evandro Affonso Ferreira EDITORA Record QUANTO R$ 39,90 (160 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

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Marcelo Justo/Folhapress Escritor Evandro Affonso Ferreira em retrato feito em 2012

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