Com realismo sádico e lirismo sórdido, obra retrata quinteto que vive na sarjeta
FOLHA
Nau dos indigentes que replica a nau dos insensatos, tendo a bordo não os loucos (eternizados no quadro de Bosch) que navegavam os rios do imaginário medieval, mas um cortejo de “náufragos do asfalto” à altura dos pesadelos boschianos.
Assim é “Nunca Houve Tanto Fim como Agora”, novo romance de Evandro Affonso Ferreira. Com realismo sádico e lirismo sórdido, destilado dos miasmas urbanos, o mineiro de Araxá sintetiza as linhas de força de sua literatura.
O livro é narrado por Seleno, ex-menino de rua que, agora na pele de um modesto professor, relembra em parágrafos breves as andanças de uma farândola de funâmbulos. Trocando em miúdos, um quinteto de enjeitados sociais e existenciais que se equilibram no meio-fio das sarjetas, sob marquises e viadutos.
Do tal quinteto só conheceremos três personagens: Eurídice (sarcástica ninfa do esgoto), Ismênio (de sensibilidade e clarividência suicidas) e o narrador. Os outros dois não são nomeados —e talvez por isso sejam mais reais que seus duplos de nomes mitológicos.
Afinal, todos eles são ainda menos do que os “ex-homens” de Gorki, vagabundos despencados na ralé russa. Em nosso sistemaescravagista(quesuperou com galhardia e longevidade a servidão czarista), já morreram na partida: roubam fotos em jazigos para compor genealogias vicárias, mas nem sequer sabem quando nasceram.
“Desdém generalizado é aniquilamento implacável”, diz o narrador. Para os maltrapilhos fedorentos, é a indiferença que os torna invisíveis.
Ao criar essa fauna remelenta, Ferreira combina procedimento de livros anteriores. De “Erefuê” ou “Catrâmbias!”, a exumação de palavras vetustas, caídas em desuso, para exprimir a degenerescência em vida de seus desvalidos —como ao descrever seus indigentes mirins como “zumbis zuruós, zoropitós”.
E, de “Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus” ou “O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam”, um adensamento do fôlego narrativo ao compor a litania de seus fracassados, sempre tendo como subtexto referências mitico-literárias.
A diferença é que o descompasso (característico da obra pregressa do escritor) entre o universo capenga das personagens e citações eruditas se explicita como jogo ficcional nas últimas cinco linhas do livro — torneio estilístico que esbofeteia o leitor ao sugerir que nos faltaaempatiadonarradorcom o “abandono épico” que produziu esse romance notável. QUANDO Evandro Affonso Ferreira EDITORA Record QUANTO R$ 39,90 (160 págs.) AVALIAÇÃO ótimo