Apenas 61% das crianças refugiadas estudam, diz ONU
EDITORA DO EMPREENDEDOR SOCIAL
Você sabe o que é apátrida? É uma pessoa que não tem pátria, não tem nacionalidade nem é reconhecida como cidadã por nenhum Estado. Eu nasci no Líbano, país que só reconhece como nacional aqueles nascidos de pais libaneses. Meus pais são sírios e fugiram para Beirute, quando decidiram se casar.
Como minha mãe é muçulmana e meu pai é cristão, o casamento deles é considerado ilegal na Síria, que por esta razão nunca nos deu uma certidão de nascimento nem passaporte. Para muitos, documentação é só burocracia. Para nós, no dia a dia, significa não existir. Sem documento não se consegue trabalhar, estudar, viajar, casar, nada.
Ser apátrida é não poder ser atendida em um hospital, é ter negada a sua matrícula em uma universidade, é ser impedida de entrar numa discoteca para dançar com seus amigos por não ter um RG.
Meu primeiro documento oficial foi um passaporte provisório, emitido pela Embaixada do Brasil em Beirute, que me permitiu entrar no país como refugiada em 19 de setembro 2014. Como eu e meus irmãos sabíamos que no Líbano não havia esperança de resolver o nosso caso, começamos a procurar outros países que pudessem nos dar nacionalidade ou visto.
Escrevemos para todas as embaixadas que existiam no Líbano. Muitas diziam que queriam nos ajudar, mas as repostas foram negativas. A do Canadá respondeu: “Onde vou colocar o visto? Vocês não têm passaporte”.
O único país que nos acolheu foi o Brasil, que nos disse “bem-vindos” como descendentes de sírios que somos, embora a própria Síria não nos reconheça como tal.
Aqui, temos status de refugiados e um visto de residente por cinco anos, o que nos permitiu tirar carteira de trabalho e CPF. O preço dessa mudança foi um pouco alto. Deixei tudo no Líbano: pai, mãe, amigos, uma vida. Mas o pior foi perder meu irmão caçula, Eddy, assassinado aos 26 anos, em 30 de junho de 2016, numa tentativa de assalto em Belo Horizonte.
Os três assaltantes são menores, chegaram a ser detidos, pois foram identificados pela menina que estava no carro com o meu irmão, mas não deu em nada.
Belo Horizonte foi também a cidade que nos acolheu. A gente não conhecia ninguém lá, mas fomos acolhidos por uma família mineira católica que tinha hospedado libaneses durante a Jornada Mundial da Juventude.
Conhecemos os Fagundes pelo Facebook. Moramos com eles por uns três anos. Há um mês, eu e minha irmã, Souad, 31, que é engenheira de telecomunicação, alugamos um apartamento.
Estamos tentando revalidar nossos diplomas no Brasil. Eu sonhava fazer medicina, mas não fui aceita na universidade na hora da matrícula. Acabei me formando em administração e computação, mas só tenho um certificado em um papel A4.
Antes de chegar ao Brasil, eu era uma sombra, não existia, não podia sonhar, não tinha esperança. Depois de ter documento brasileiro com foto e nome, até dirijo. Como falo quatro línguas [árabe, in- glês, francês e armênio], trabalhei um ano e cinco meses como gerente de comércio exterior em uma fazenda em Ibitinga, no interior de São Paulo.
Eu julho, viajei para Dubai com o meu chefe para fazer uma reunião com clientes dos Emirados Árabes, mas não consegui entrar.
Quando viajo para o exterior, uso o passaporte brasileiro para estrangeiros. É amarelo, ninguém conhece, nem a polícia daqui. Imagina lá fora. Desta vez, fiquei 48 horas no aeroporto, mesmo já tendo entrado duas outras vezes em Dubai a trabalho com o mesmo passaporte.
Infelizmente, esse problema acabou inviabilizando o meu trabalho. Acabei de perder o emprego e voltei a morar em Belo Horizonte.
Até 2014, pensava que nós éramos os únicos. Foi quando descobri a campanha do Acnur, da ONU, “I Belong” (Eu Pertenço), que defende os direitos de 10 milhões de pessoas na mesma situação que nós.
A nova lei brasileira de imigração deve entrar em vigor em novembro. Quero ser cidadã brasileira. O Brasil me deu existência. Amo este país e tenho orgulho de representá-lo lá fora.
DE SÃO PAULO
Mais de 3,5 milhões de crianças refugiadas estão fora da escola, segundo um relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) publicado nesta segunda-feira (11).
No mundo, 91% das crianças frequentam a escola primária; entre as crianças refugiadas, são apenas 61% e, em países de baixa renda, menos de 50%.
“Dos 17,2 milhões de refugiados sob mandato do Acnur, metade são crianças”, disse Filippo Grandi, alto comissário das Nações Unidas para refugiados.
“A educação desses jovens é crucial para o desenvolvimento sustentável e pacífico dos países que os acolhem, e para seus países de origem, quando eles puderem retornar.”
Mas, segundo Grandi, em comparação com outras crianças e adolescentes de todo o mundo, os refugiados têm muito menos oportunidades educacionais.
Apesar de os números serem preocupantes, houve melhora —em 2015, apenas 50% das crianças refugiadas estavam na escola primária.
O índice subiu para 61% graças a medidas de países vizinhos à Síria para matricular mais crianças refugiadas nas escolas locais e outros programas educacionais, e a chegada a países europeus, onde a matrícula é obrigatória.
O problema piora na medida em que as crianças refugiadas crescem. Apenas 23% dos adolescentes refugiados estão matriculados no ensino médio, em comparação a 84% dos adolescentes em geral. Nos países de baixa renda, que acolhem 28% dos refugiados do mundo, os números são ainda menores— apenas 9%.
Apenas 1% dos refugiados está matriculado no ensino superior, diante de 36% no mundo.
No relatório “Deixados para trás - A educação dos refugiados em crise”, o Acnur insiste para que a educação seja considerada parte fundamental das operações humanitárias com refugiados, e que seja garantida por financiamento de longo prazo.
A agência exorta governos a incluírem os refugiados em seus sistemas nacionais de educação, reconhecendo que, em alguns países, há dificuldades por causa da falta de recursos. (PATRÍCIA CAMPOS MELLO)
“é não poder ser atendida em hospital, é ter negada a sua matrícula em uma universidade, é ser impedida de entrar numa discoteca para dançar com seus amigos por não ter um RG “país que nos acolheu foi o Brasil, que nos disse ‘bem-vindos’ como descendentes de sírios que somos, embora a própria Síria não nos reconheça como tal