Polícia de SP ganha aval para dizer que droga ‘não é droga’
Estrutura de laboratório é insuficiente para exames de substâncias ilícitas
Sem material, peritos são isentos por gestão Alckmin de identificar novas drogas; governo destaca transparência
Sem estrutura para fazer frente à evolução das drogas sintéticas vendidas no país, a Polícia Científica de São Paulo decidiu oficializar a atual ineficiência e publicar uma norma que isenta os peritos de conseguir confirmar a existência de substâncias ilícitas nos exames laboratoriais.
Por exemplo: se o policial analisar um comprimido de ecstasy, mas não tiver em mãos material específico para o teste de confirmação, deverá tratar a substância como se não fosse droga —agora com respaldo da instituição.
Nesse laudo, deverá constar que “não foi detectada a presença de substâncias rotineiramente pesquisadas neste laboratório devido à ausência de padrão analítico”. Na prática, provoca o mesmo efeito que dizer que não é droga.
Para produzir efeito legal, como punir alguém em um processo judicial, o laudo precisa dizer que foi “detectada” a presença da substância X constante na lista X de portaria da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Isso só é possível, porém, quando a perícia consegue precisar que a substância analisada é idêntica à de uma amostra catalogada anteriormente pela Anvisa como substância ilícita no país.
Muito mais do que uma questão de semântica, tal norma torna público um grave problema no sistema nacional de repressão ao tráfico de drogas, que é a impossibilidade de punir parte do comércio de entorpecentes por não conseguir provar que aquilo que está sendo vendido é, de fato, uma substância ilícita.
O efeito disso é que, se o laudo pericial não consegue atestar que o material apreendido é uma das substâncias proibidas, a Justiça não pode condenar um suspeito, por falta de materialidade do crime.
“O laudo não está dizendo que não tem aquela droga ali. Ele está dizendo que, por falta de padrão de confronto, o perito não pode afirmar”, diz Ivan Miziara, superintendente da Polícia Científica do governo Geraldo Alckmin (PSDB) e responsável pela portaria publicada em julho.
Segundo ele, a medida dá transparência e ajuda a padronizar a redação de laudos. MERCADO O problema ocorre num momento em que há um aumento de drogas sintéticas no mercado nacional. Só entre 2013 e 2016, a Polícia Federal identificou 56 tipos de drogas novas, todas vendidas como variações de LSD e ecstasy.
A estimativa da polícia paulista é que as drogas sintéticas representem 2% dos cerca de 260 mil exames realizados anualmente nas apreensões em suspeitas de tráfico de droga. Assim, mais de 5.000 exames anuais correm risco de não terem um material específico para teste.
Além da dificuldade de compra de material pela burocracia, há a questão de custo. Um frasco com padrões de confronto pode custar de R$ 800 a R$ 2.000 (um frasco faz diversos exames).
Só com teste para maconha e cocaína foram gastos no ano passado em São Paulo cerca de R$ 200 mil —dinheiro que sai da verba de custeio, que concorre com outras despesas, como os reagentes.
O orçamento da Polícia Científica é de R$ 613,3 milhões (em torno de R$ 45 milhões para custeio) neste ano, contra R$ 4,1 bilhões da Polícia Civil e R$ 14,8 bilhões da PM.
“A primeira barreira é o Estado investir na aquisição de padrões [de confronto das drogas]. O Estado não investe como deveria na Polícia Científica”, afirma o presidente do sindicato dos peritos de São Paulo, Eduardo Becker.
“É preciso ter equipamento, padrão, reagente, insumos. Mas não tem. Não tem cromatógrafo [aparelho para testar a droga] em todos os núcleos do Estado”, diz.