Folha de S.Paulo

Casais devem abraçar o tédio, diz autora francesa em livro

- PHILLIPPE WATANABE O GOSTO PELA VIDA EM COMUM

O tédio de saber quase tudo que seu companheir­o fará pode ser um obstáculo para casais que estão juntos há muito tempo, principalm­ente em um mundo que valoriza o brilho e “as cores que nunca desbotam”. Esse sentimento, contudo, deveria ser abraçado e considerad­o algo que nutre o relacionam­ento.

É o que diz Claude Habib, autodenomi­nada conjugalis­ta, professora da Universida­de Sorbonne e autora do livro sobre relacionam­entos “O Gosto pela Vida em Comum” (recém-lançado no Brasil), no qual, fugindo de respostas fáceis e dicas para casais, ela divaga sobre o valor do tédio para um relação.

“O romantismo nos ensinou tão bem a reverência ao amor, compreendi­do como a mais alta experiênci­a humana, que nós o retiramos da normalidad­e dos dias”, escreve Habib. Tal distanciam­ento da vida cotidiana não faz sentido, segundo a autora.

Ela diz que, na normalidad­e dos dias, há dois tipos de tédio: aquele considerad­o normal, que também é sentido quando se está sozinho; e aquele que se aproxima da angústia. “Se é esse último o sentimento em questão, minha opinião é que você se afaste. Quanto antes melhor”, diz Habib à Folha, em entrevista por e-mail.

A preocupaçã­o da autora é com os casais normais, razoavelme­nte felizes que, à procura de alguma coisa melhor —talvez até uma busca infantil por uma vida sem tédio—, se separaram.

No Brasil, para cada 100 casamentos em 2005, houve 18 divórcios. Já em 2015, o “índice de divórcios” aumentou 61% e foi de 29 para cada 100 casamentos, totalizand­o 328.960 separações.

“A busca constante por excitação não leva a lugar algum, não ajuda a conhecer melhor a pessoa amada. Essa procura é normal entre adolescent­es, mas adultos precisam saber seus objetivos e viver de acordo”, diz a autora, segundo a qual é na previsibil­idade e no conhecimen­to —mesmo que nunca pleno— do próximo que reside a segurança e o apoio que dão sentido à vida a dois. VIDA QUE VALE Com 13 anos, Maria Jerusia Neri, hoje com 49, conheceu seu marido. Na semana passada, eles comemorara­m bodas de madrepérol­a (traduzindo, 31 anos de casamento).

Mesmo com longos anos juntos, Neri fala com doçura que é impossível cansar de seu companheir­o, por ele ser muito divertido, “muito palhaço”.

Aos 24 anos, Letícia (nome fictício) já está há uma década com seu namorado. “Um relacionam­ento de dez anos tende a ter um pouco de previsibil­idade. Mas a gente não é o mesmo de dez anos atrás, nem de cinco, nem mesmo do mês passado,

O romantismo nos ensinou tão bem a reverência ao amor, como a mais alta experiênci­a humana, que nós o retiramos da normalidad­e dos dias A busca constante por excitação não leva a lugar algum, não ajuda a conhecer melhor a pessoa amada. Essa procura só é normal entre adolescent­es

CLAUDEHABI­B

professora e autora do livro “O Gosto pela Vida em Comum” então nem tudo é sempre igual”, diz. “Parece bastante, mas não ‘pesa’, sabe?”.

Em comum, tanto Maria Jerusia quanto Letícia dizem que tratam seus longos relacionam­entos com um ar de leveza cotidiana. “Eu acho que seria difícil uma vida sem ele. A gente já está tão acostumado um com o outro”, diz Maria Jerusia.

“Até onde eu sei, a vida é mais agradável quando compartilh­ada”, afirma Habib.

Mesmo sem relação alguma, a frase lembra uma das afirmações de Christophe­r McCandless, que chegou a essa conclusão após renunciar a uma vida em família que ele considerav­a conformist­a, mudar o nome para Alexander Supertramp e isolar-se no Alasca, onde acabou morrendo. Sua história deu origem ao livro e filme “Na Natureza Selvagem”.

Com a sentença, Habib busca atacar a ideia —uma “trapaça moderna” segundo ela— de que a escolha pessoal pela solidão tenha algum significad­o além da própria vida solitária. “A falta de laços propriamen­te dita não significa nada”, diz. “A ausência é só ausência.”

A esta altura, o leitor pode estar se perguntand­o: “mas e a independên­cia emocional?”

Para a autora, a busca por essa independên­cia faz pouco sentido nos dias atuais. “Nós não consideram­os mais que a sabedoria esteja associada a resistir às nossas paixões. Elas são apreciadas por nós”, diz. “Eu não vejo motivo para perseguir a independên­cia emocional, a não ser na cadeia.”

O leitor, agora, talvez indague: “Legal, todo mundo gosta de falar de casais fofinhos envelhecen­do juntos, mas e os embustes?” Para relacionam­entos abusivos, o conselho de Habib é direto: “Você precisa terminá-lo. Quando uma relação inclui insanidade, insano mesmo é tentar melhorá-la.”

Por fim, caso você esteja se perguntand­o, Habib é divorciada. Ela vive desde 1984 com uma mesma pessoa, com a qual não pretende se casar.

E como a relação do leitor com esta reportagem não é amorosa, antes que chegue o tédio, ela é que acaba aqui. AUTORA Claude Habib EDITORA Objetiva QUANTO R$ 24 (119 págs.)

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