Folha de S.Paulo

Quem sabe ver irá se deleitar com cada imagem de coreano

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DO CRÍTICO DA FOLHA

Com “Na Praia à Noite Sozinha” Hong Sang-soo realiza seu conto de inverno e, talvez, seu filme mais grave até aqui. Dividido em duas partes, “Na Praia...” começa com o encontro, na sacada de um apartament­o, na Alemanha, entre duas amigas coreanas. Uma delas, Younghee, é uma atriz famosa que espera a chegada de amante, um diretor de cinema também famoso, casado.

Elas conversam sobre o que qualquer uma conversari­a: o amor, a impossibil­idade de amar (da amiga), a hipótese de o diretor vir até ela, como prometeu, ou não vir.

Eis, desde aí, o que o cinema de Hong Sang-soo tem de mágico: tudo se passa num universo absolutame­nte trivial, cotidianam­ente plausível, de onde não há que esperar nenhuma surpresa. No entanto, sequência após sequência tudo parece se transforma­r. Estamos no território paradoxal desse nada que é tudo.

Na segunda parte do filme, a atriz retorna à Coreia.

Logo se dá isso que parece essencial nos filmes do coreano: o encontro entre amigos. No bar, de preferênci­a, mas não só. Um desses amigos parece, a ela, ter envelhecid­o bastante. Outros consideram que ela está mais madura. Fala-se de amor, idade e até da hipótese da morte, claro. Por mais distante que esteja, ela está sempre próxima.

O amante que não foi encontrá-la, a mudança de cidade (ela deixa Seul), o abandono da carreira, uma eventual notícia sobre como vai a vida do diretor depois da separação... Uma discussão sobre como são os homens. Um nada que é tudo.

Verdade que basta um pouco de cerveja para Younghee deixar de lado as amenidades: a atriz não tem papas na língua. Conviver com ela, reconhece, não é fácil. Na mesma noitada, ela beija uma amiga: mulheres valem mais do que homens.

Mas de que filme você está falando, homem? Que interesse isso tem? Nenhum, para quem não quiser ou souber ver.

Quem sabe deleita-se com cada imagem de Hong, com a energia de sua Younghee, com as cervejas que toma com os amigos e que a tiram do sério (ou, ao contrário: a lançam na dimensãoda­totalsince­ridade).

Se mergulha seus personagen­s num cotidiano inteiramen­te banal, o filme vai mostrando, pouco a pouco, o quanto o cotidiano nada tem de banal. Ou até o quanto o banal pode nada ter de banal: esse mundo feito de rotina, ou da tentativa de estabelece­r rotinas, é povoado de tensões.

Essas tensões podem eclodir subitament­e, num diálogo. Ou num sonho. Ou no diálogo de um sonho. Pois cada passo da atriz revela alguém que vive entre o real e o sonho, o visível e o não visível.

Claro, existe ali a afirmação de uma personalid­ade tão exuberante quanto a beleza de Younghee. Mas onde isso vai desembocar? Talvez no livro que ganha de presente de um diretor (outro, não o seu ex-amante) onde ele assinala o texto que deu origem ao filme que está prestes a rodar. Um texto que parece muito com o momento de Younghee (e talvez seja, também, o do outro diretor, o ex-amante).

É possível que a vida exista mesmo para virar um livro, como dizia Borges. Ou um filme sublime como este, um dos raros momentos de cinema a reter deste ano. (IA) (BAMUI HAEBYUN-EOSEO HONJA) DIREÇÃO Hong Sang-soo ELENCO Kim Min-hee, Seo Young-hwa PRODUÇÃO Coreia do Sul, 2017, 14 anos QUANDO nesta quarta (13), às 20h30, no CineSesc; grátis AVALIAÇÃO ótimo

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