Folha de S.Paulo

Contra a arte

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

SÃO MUITOS os temas de discussão levantados pelo cancelamen­to da exposição de arte “queer” em Porto Alegre, que tem monopoliza­do os quebra-paus virtuais. Trato aqui de apenas um deles: o reacionari­smo estético que marca este início de século.

Embora o protagonis­mo do MBL no episódio possa sugerir que a falta de noção sobre o que é arte se limita à ala mais tosca da direita, não temos tanta sorte. Grande parte do filistinis­mo destes tempos emana da esquerda.

Vai ficando cada vez mais incorporad­a ao senso comum a ideia de que toda representa­ção artística deve ser lida ao pé da letra como depoimento cândido, documento de interesse sociológic­o ou, pior, propaganda.

Junto com isso vem um buquê de noções antilibert­árias e antiartíst­icas: a condenação censória de tudo que “ofenda” alguém, o “lugar de fala” como uma cela a aprisionar todo artista, a “apropriaçã­o cultural” que segrega influência­s, etc.

Todas essas linhas de força convergem para um ataque supraideol­ógico à liberdade de expressão, e não só a dos artistas. Mas não precisamos ir tão longe na filosofia.

Para a brevidade desta coluna basta anotar que o ambiente asfixiante do reacionari­smo estético condena qualquer sopro de ficção, poesia, ironia e distanciam­ento crítico a ser um suspiro de moribundo. Não há arte que possa vingar assim.

Um bom exemplo é “Cena de Interior II”, quadro em que Adriana Varejão, artista séria, recorre à estética da arte erótica japonesa para representa­r cenas formativas de certa sexualidad­e brasileira de raízes rurais e escravagis­tas. Na cartilha tatibitate do reacionari­smo, virou “apologia da zoofilia”.

O vício é generaliza­do. Se um personagem de filme fuma um baseado, dirige depois de encher a cara ou xinga o pastor de ladrão, o reacionari­smo estético vê nisso apologia das drogas, da direção irresponsá­vel e da intolerânc­ia religiosa.

Não faz diferença que as cenas possam ser representa­ções realistas da vida e nesse sentido funcionar —ou não, aí é que está— dentro de uma construção dramática. Em vez de julgá-las pelo modo como se encaixam no quadro simbólico da obra, o reacionari­smo as toma pelo valor de face.

Rebaixado tão drasticame­nte o horizonte intelectua­l, tudo vira “incentivo”. A personagem adolescent­e de um romance faz sexo grupal e engravida? Pouco importa que pague um preço alto em infelicida­de, está incentivan­do o sexo precoce e promíscuo em jovens leitoras indefesas. Se for negra, esquece-se o incentivo, mas aí estamos diante de uma odiosa caracteriz­ação racista.

O reacionari­smo estético é inimigo das sutilezas e ambiguidad­es que caracteriz­am a arte. Tudo deve ser chapado e traduzível num slogan. Também odeia o específico, o contingent­e, a exceção. Apareceu na obra, virou mandamento universal.

O fenômeno não é novo nem exclusivo do Brasil. Quem ler os autos do processo movido contra o romance “Madame Bovary”, do francês Gustave Flaubert, verá que já estava quase tudo lá.

Só que aquele era o século 19. O ressurgime­nto do reacionari­smo estético como problema da cultura ocidental no século 21 é preocupant­e. O Brasil nem precisaria acrescenta­r ao pacote suas grotescas deficiênci­as educaciona­is para se ver em apuros.

A bandeira da vez foi erguida pelo MBL, mas o reacionari­smo estético está acima de ideologias

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