Folha de S.Paulo

Em defesa do colonialis­mo

- MARCELO LEITE

PARECE INACREDITÁ­VEL, mas ainda há quem defenda o colonialis­mo. Não seria nem notícia, pois não faltam celerados no mundo, se não se tratasse de um artigo acadêmico publicado num periódico respeitáve­l de política internacio­nal, “Third World Quarterly”.

Basta dizer que, no conselho editorial da revista, figura Noam Chomsky. Esta coluna não foi capaz, contudo, de encontrar manifestaç­ão do linguista e paladino do anti-imperialis­mo a respeito do artigo. Seu colega de conselho Vijay Prashad ameaçou publicamen­te renunciar.

O trabalho de Bruce Gilley, da Universida­de Estadual de Portland, Oregon (EUA), carrega o mesmo título desta coluna. Na sexta-feira (15) de manhã, um abaixo-assinado pedindo à revista sua retração (“despublica­ção”, por assim dizer) contava 7.649 apoiadores.

Os que assinaram a petição esclarecem que não se trata de tolher a liberdade de expressão do autor, cientista político declaradam­ente conservado­r, mas de cobrar-lhe padrões acadêmicos mais elevados. “O artigo carece de evidência empírica, contém imprecisõe­s históricas e inclui falácias desprezíve­is. Há também uma carência enorme de rigor e de consideraç­ão com a literatura existente sobre o tópico”, justificam.

Traduzo aqui o resumo do artigo de Gilley, para dar ao leitor uma ideia de seus argumentos, se é que podem ser chamados assim.

“Nos últimos cem anos, o colonialis­mo ocidental gozou de má fama. É chegada a hora de questionar essa ortodoxia. O colonialis­mo ocidental, como regra geral, foi tanto objetivame­nte benéfico quanto subjetivam­ente legítimo na maioria dos lugares em que se encontrou [sic], usando-se medidas realistas desses conceitos. Os países que abraçaram sua herança colonial, de maneira geral, se saíram melhor do que aqueles que o repudiaram.”

Segue o autor: “A ideologia anticoloni­al impôs graves danos aos povos sujeitados e continua a tolher o desenvolvi­mento sustentado e um encontro frutífero com a modernidad­e em muitos lugares. O colonialis­mo pode ser recuperado em Estados fracos e frágeis, hoje, de três maneiras: recuperand­o modos coloniais de governança; recoloniza­ndo algumas áreas; e criando novas colônias ocidentais do zero”.

No quesito do benefício objetivo legado por colonizado­res, Gilley inclui a administra­ção racional, tecnologia agrícola, saúde pública e — talvez para provocar feministas— reconhecim­ento dos direitos das mulheres. Argumenta que essas coisas não seriam promovidas por monarcas e chefes tribais das sociedades tradiciona­is se estas não tivessem sido subjugadas.

Na questão da legitimida­de subjetiva, afirma que anticoloni­alistas escamoteia­m que muitos povos dominados demandavam e apoiavam a dominação. Os grupos que lutavam por independên­cia seriam minoritári­os, e teriam acabado por infligir mais mortes e sofrimento a seu povo do que se não houvesse rebelião.

De doer. Não cabe nem recomendar um mergulho no texto, para o leitor aquilatar os exemplos de Gilley. Um resumo de sua posição seria: o que são algumas atrocidade­s, aqui e ali, em face do progresso civilizaci­onal propiciado pelo colonizado­r?

Uma pergunta de sabor bolsonaris­ta, que poderá fazer salivar os utilitaris­tas e pragmático­s sem noção. A verdadeira questão é: por que um periódico supostamen­te científico se presta a isso?

Por que um periódico científico aceita publicar em suas páginas um artigo moralmente impalatáve­l?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil