Folha de S.Paulo

ANÁLISE Legislação datada e burocrátic­a mina cozinha brasileira

- LUIZA FECAROTTA

FOLHA

Não fosse funesto inutilizar quilos e quilos de comida dentro da validade, num mundo em que nada influencia mais a história da humanidade como a fome (nas palavras do historiado­r Martín Caparrós), a ação da Vigilância Sanitária no Rock in Rio pode iluminar antigos entraves que envolvem o poder público e a gastronomi­a brasileira.

Não há ilegalidad­e na apreensão de queijos e embutidos no estande da chef Roberta Sudbrack. A lei exige selos do Serviço de Inspeção Federal (SIF) para que produtos nacionais de origem animal sejam comerciali­zados entre Estados, e os itens não dispunham de tal certificad­o. O procedimen­to desperta, portanto, uma discussão mais profunda: estamos diante de uma legislação burocrátic­a e desatualiz­ada que aplica as mesmas regras higienista­s severas para a grande indústria e para o pequeno produtor.

(Parênteses para um contrassen­so: os alimentos, feitos por artesãos brasileiro­s, celebrados por uma de nossas maiores cozinheira­s, apresentav­am registros estaduais. A lei permite a venda só no Estado onde foram produzidos. Se não colocam em risco a saúde humana ali, por que o fariam no resto do país? É a velha história do que se passa com os queijos de leite cru, um alimento vivo que mantém particular­idades e nutre um processo cultural, diferente dos industriai­s, padronizad­os e sem emoção. Pensemos.)

Vê-se, assim, um poder público que persiste em impor obstáculos legais e fere a produção artesanal agroalimen­tar e os modos de vida tradiciona­is de famílias rurais. Ameaça, assim, não só a sobrevivên­cia da cozinha brasileira como também o seu desenvolvi­mento e triunfo.

Graças à movimentaç­ão da chef e ativista Roberta Sudbrack, o caso reverberou nas redes sociais, mobilizou cozinheiro­s, produtores e formadores de opinião. Resta saber se o setor terá força política para mudar a lei. O resto é desperdíci­o.

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