Folha de S.Paulo

Angélica Liddell trata dos conflitos entre espiritual e instintivo

Atriz, diretora e dramaturga espanhola apresenta em São Paulo ‘Gênesis’, espetáculo inspirado em trecho bíblico

- MARIA LUÍSA BARSANELLI

‘O grande paradoxo é que precisamos de Deus, apesar de sua inexistênc­ia’, afirma encenadora catalã

Ao ler o livro bíblico do Gênesis, Angélica Liddell diz ter se identifica­do com “a ira de Deus”. Em especial com o trecho em que ele diz ter se arrependid­o de criar o homem —e pensa em dar fim à invenção.

“Isso tem duplo sentido para mim”, diz a atriz, dramaturga e diretora catalã à Folha, por e-mail. “Por um lado, é o desejo do fim do mundo, por outro me ponho contra as minhas criações. Às vezes odeio meu próprio trabalho.”

Um dos principais nomes do teatro contemporâ­neo espanhol, Liddell, 51, fala em suas peças de temas incômodos: o horror, a violência, a imposição de padrões de beleza.

Em “Gênesis 6: 6-7”, inspirada no trecho bíblico, ela une esses princípios a outro debate: os conflitos entre o espiritual o instintivo do homem.

O espetáculo, que terá sessões em São Paulo nesta quarta (20) e quinta (21), é o último de sua “Trilogia do Infinito”,

MONTAGEM NACIONAL

na qual a dramaturga discute a busca humana pelo inapreensí­vel e pelo sagrado —a segunda parte, “Que Farei Eu com Esta Espada”, foi encenada no Brasil no ano passado.

“Hoje há um empobrecim­ento absoluto da vida espiritual em favor de uma explicação materialis­ta do homem. Mas a alma humana é mais do que uma teoria econômica”, diz Liddell. “O grande paradoxo é que precisamos de Deus, apesar de sua inexistênc­ia.” PROFUNDIDA­DE Ainda que não se considere religiosa, a diretora considera que há mais profundida­de religiosa em suas obras que nos “fanáticos” (“Eles têm uma visão plana que não tem nada a ver com a fé”).

Mas ela vê um aspecto mais mitológico e menos religioso no trecho bíblico que inspira seu espetáculo: “Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a Terra e pesou-lhe em seu coração. E disse o Senhor: destruirei o homem que criei de sobre a face da Terra, desde o homem até o animal, até o réptil, e até a ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito”.

Para ela, trata-se de um texto literário que está na raiz da religião e da sociedade judaico-cristã. “Não se pode separar um do outro.”

Em “Gênesis”, como em boa parte de seus trabalhos, a catalã alterna monólogos seus, verborrági­cos, com cenas de apelo visual, inspiradas nas artes plásticas —aqui, ela alude a estampas medievais, “essa representa­ção à margem do naturalism­o”.

Liddell transpõe o aspecto espiritual e ritualísti­co para o corpo dos atores de sua companhia, a Atra Bilis Teatro. Seu Adão e sua Eva surgem nus e com os corpos tingidos de escarlate, debatendo espírito e matéria. Noutra cena, duas gêmeas dançam ora empunhando guitarras elétricas, ora fuzis AK-47.

É o que a diretora chama de “violência poética”. “Essa é a única maneira de nos devolver a violência como componente fundamenta­l da condição humana”, afirma.

“Na vida poética, posso me identifica­r com as convulsões espirituai­s de um assassino. Não somos inocentes. Acredito que exista uma lei da poesia que nos devolve a intimidade das emoções.” QUANDO qua. (20) e qui. (21), às 20h ONDE Sesc Pinheiros, r. Paes Leme, 195, tel. (11) 3095-9400 QUANTO R$12aR$40 CLASSIFICA­ÇÃO 16 anos

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Luca Del Pia/Divulgação A personagem Eva em cena de ‘Gênesis’, espetáculo que Liddell apresenta em São Paulo

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