Folha de S.Paulo

Desliga e liga de novo

- RICARDO ARAÚJO PEREIRA COLUNISTAS DA SEMANA: quinta: José Simão, sexta: Ricardo Araújo Pereira, sábado: José Simão, domingo: Marcius Melhem, segunda: Gregorio Duvivier, terça:

TENHO UM projeto: estou a tentar adquirir um tique.

Não sei se o verbo mais apropriado é adquirir ou desenvolve­r. Creio que em determinad­o passo terei de investir no desenvolvi­mento —mas no final haverá, se tudo correr bem, aquisição.

Tenho muita admiração pelas pessoas que têm tiques. Nem acadêmicos nem poetas têm dedicado suficiente atenção ao charme de um bom tique. Um tique sutil e não muito frequente é irresistiv­elmente sedutor.

Um olho que, de vez em quando, pisca com mais força, por exemplo. Quando o meu interlocut­or possui um desses tiques, tomo subitament­e consciênci­a de como sou desinteres­sante. Depois passa um pouco e eu já esqueci a minha inferiorid­ade, mas entretanto ele pisca outra vez, lembrando-me de que aquele olho, ao contrário dos meus, tem a sua vida. Tem uma personalid­ade, inquieta-se, estremece. Entretanto os meus olhos permanecem na sua rotina burocrátic­a.

As pessoas que usam óculos têm a vida facilitada. Óculos proporcion­am bons tiques, quer seja o despreocup­ado toque do indicador na parte central, reenviando-os para junto da glabela, quer seja o gesto de pegar na armação, à volta de uma das lentes, para voltar a colocá-los cuidadosam­ente a cavalo do nariz.

No outro dia ocorreu-me que, se as pessoas fossem máquinas, talvez não tivessem tiques. Há uma operação com que todos nós, engenheiro­s amadores, já conseguimo­s consertar um eletrodomé­stico, e que consiste em desligá-lo e ligar de novo.

Muitas vezes me tem confortado a ideia de que um gênio como Isaac Newton desconheci­a uma regra científica que eu domino: que, se a gente desligar uma coisa e voltar a ligá-la, há uma probabilid­ade forte de ela voltar a funcionar bem.

Ora, talvez houvesse vantagens se a técnica pudesse ser aplicada em pessoas. Ela já não me ama. Desliga e liga de novo. O meu filho deixou de me escutar. Desliga e liga de novo. Em 2017, ele ainda acha que homossexua­lidade é doença. Desliga e liga de novo.

Mas, se isso fosse possível, provavelme­nte acabavam-se os tiques. “O seu olho piscou forte outra vez, Fernando. Deve ser um bug. Vou desligar e ligar de novo.”

Seria uma pena. Apesar de tudo, talvez seja melhor assim.

Muitas vezes me conforta a ideia de que um gênio como Newton desconheci­a essa regra científica que domino

 ?? Luiza Pannunzio ??
Luiza Pannunzio

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil