Folha de S.Paulo

Moralismo e censura

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Na última terça-feira (19), a Justiça do Rio Grande do Sul frustrou uma tentativa de proibição da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, que constava da programaçã­o da 24ª edição do festival de teatro Porto Alegre em Cena.

O espetáculo é um monólogo que reconta histórias bíblicas e propõe uma reflexão sobre a intolerânc­ia em questões ligadas à orientação sexual. O aspecto considerad­o polêmico da obra reside na ideia de transporta­r Jesus para os dias atuais na pele de uma transexual.

Na decisão, o juiz José Antônio Coitinho defendeu a liberdade de expressão e se recusou a vetar a peça que, conforme ressaltou, é apresentad­a em local fechado e está submetida à classifica­ção etária.

O advogado que solicitava a suspensão das apresentaç­ões classifico­u o espetáculo como “dejeto cultural” e “ultraje” ao cristianis­mo.

A correta decisão da Justiça gaúcha contrasta com outra, tomada antes pelo juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, em Jundiaí (SP), que vetou o mesmo espetáculo ao considerar que entes religiosos não podem ser “expostos ao ridículo”.

Em sua argumentaç­ão, o magistrado defendeu a proibição para impedir um ato “que maculará o sentimento do cidadão comum”.

Tal decisão somou-se a exemplos recentes de ações inspiradas em moralismo. Entre estes, a Polícia Civil apreendeu, em Campo Grande (MS), um quadro que fazia parte de uma exposição do Museu de Arte Contemporâ­nea do Estado.

Um grupo de deputados estaduais havia registrado um boletim de ocorrência contra a mostra, por supostamen­te incitar a pedofilia — quando a intenção evidente da artista era denunciá-la.

Em outro caso, que antecedeu os demais, o Santander Cultural, de Porto Alegre, cancelou a exposição Queermuseu, que reunia obras de artistas renomados em torno da temática de gênero.

Cedeu-se à pressão de grupos como o MBL (Movimento Brasil Livre, de orientação liberal), que protestara­m contra a exibição de imagens que incluíam, no seu entender, referência­s à zoofilia e ofensas ao cristianis­mo.

Concorde-se ou não com seus motivos, o boicote é manifestaç­ão legítima, e a decisão da entidade organizado­ra esteve na esfera privada. Já os outros episódios configuram uso intoleráve­l do poder do Estado contra a liberdade de expressão, a contrariar princípios da democracia e do texto constituci­onal. Em uma palavra, censura.

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