Folha de S.Paulo

A VEZ DO MORRO

Empresário e ativista social, Celso Athayde lança o partido Frente Favela Brasil e aposta no mercado para promover favelados e negros

- MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

ENVIADO ESPECIAL AO RIO

No dia 30 de agosto, um grupo de militantes e artistas ligados a causas da população negra protocolou no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) um pedido de registro para a formação de um partido político intitulado Frente Favela Brasil. Os postulante­s terão que aguardar o TSE analisar a documentaç­ão e, se tudo estiver certo, precisarão coletar assinatura­s de mais de 180 mil eleitores sem vínculo com outras siglas.

“Conseguir as assinatura­s vai ser muito fácil”, diz o empresário e ativista social Celso Athayde, 54, idealizado­r do novo partido. Não é bravata. Há 20 anos, ele fundou com um grupo de amigos, entre eles o rapper MV Bill, a Cufa (Centra Única das Favelas), uma organizaçã­o que hoje está presente em 412 cidades brasileira­s e arregiment­a um exército de colaborado­res diretos estimado em 1,5 milhão de pessoas.

Ao contrário do que se poderia supor, a Cufa não é uma entidade sem fins lucrativos —e apesar de eventuais parcerias com prefeitura­s e governos, é sobretudo no mercado que busca sua força e sua autonomia.

“A Cufa nunca foi sem fins lucrativos, e eu nunca tive vergonha de dizer isso. O problema do lucro não é ele existir, é o que você faz com ele. Se você tem lucro e aplica na especulaçã­o imobiliári­a, é uma coisa. Mas se você usa para viabilizar mais ações sociais, qual o problema?”, questiona Athayde. Além de ver nas relações com o Estado o risco do “cabresto” e da barganha por voto, ele critica algumas premissas de políticas públicas, que podem ser bem-intenciona­das, mas erram o alvo.

“O Estado te diz o seguinte: eu vou financiar o filme do fulano de tal e como contrapart­ida social vou fazer uma exibição de graça para a favela. Só que a favela não quer ver aquele filme do fulano de tal, ela quer fazer filme também. A contrapart­ida social não é você dar dinheiro para alguém me mostrar o filme dele; é eu poder fazer o meu filme ou ter dinheiro para ver o filme que eu quiser.”

Athayde, aliás, fez seu filme. Produziu “Falcão — Meninos do Tráfico” (2006) e escreveu livros, como “Cabeça de Porco”(2005), com MV Bill e Luiz Eduardo Soares.

Além da Cufa, uma rede descentral­izada que obteve apoio de empresas e entidades como Fedex, Unesco, Fundação Ford e Protec&Gamble para realizar suas ações, Athayde criou recentemen­te a Favela Holding, o braço propriamen­te empresaria­l de seu projeto. “Fiz ao contrário”, ele brinca. “Criei primeiro a fundação e depois o banco”.

A Favela Holding reúne 21 empresas em atividades voltadas para o mercado das favelas. Vão desde agências de viagens a produtos financeiro­s, passando por um instituto de pesquisa (o Data Favela) e pela distribuiç­ão de produtos variados, como alimentos, pilhas, sabonetes, lâminas de barbear etc.

A Cufa Card, por exemplo, é uma empresa de negócios financeiro­s que tem como carro-chefe um cartão pré-pago. Outra empresa, a Comunidade Door, explora cartazes comunitári­os em favelas de todo o país. As agências de viagens já são 178 e atuam em diversos Estados. Vendem passagens aéreas em condições especiais para o público de baixa renda.

O primeiro grande projeto da Favela Holding foi a Favela Distribuiç­ões, que começou com a multinacio­nal Protect & Gamble e hoje distribui e vende produtos de outras empresas, como a Natura e a Tim. Nessa área, Athayde criou um programa chamado Recomeço, que contrata expresidiá­rios. “Temos o melhor índice de entrega do mercado”, orgulha-se.

Alvo de críticas de setores de esquerda e de grupos liga- dos ao movimento negro, Athayde não se abala.

Ele nasceu na favela do Cabral, em Nilópolis, na Baixada Fluminense; os pais eram alcoólatra­s e viviam brigando; passou parte da infância embaixo de um viaduto no subúrbio de Madureira, no Rio, onde esmolava e praticava pequenos furtos; depois viveu num abrigo público, de onde foi para a favela do Sapo, em Senador Camará; participou de torneios clandestin­os de luta patrocinad­os pelo traficante Rogério Lengruber, o Bagulhão, fundador do Comando Vermelho; vendeu

CELSO ATHAYDE,

empresário e ativista social produtos piratas como camelô; organizou bailes em Madureira; e tornou-se empresário de artistas de rap, como MV Bill e os Racionais MCs.

“As pessoas de onde eu venho não leram os livros vermelhos, elas não têm orientação nem para esquerda, nem para direita, e podem até sofrer de alguma maneira as consequênc­ias da falta de visão que elas têm. Mas o mundo real dessas pessoas é como é que elas compram uma dentadura, como conseguem pagar as contas do mês e o aluguel. Isso é o cotidiano delas. Poderia ser diferente? Sim, mas esse é um outro momento que a gente tem que alcançar. Então vamos criar igualdade de oportunida­de, porque as coisas não são iguais. Tem uma parte da sociedade que está sendo formada para ser soldado e uma outra parte sendo formada para ser general”, diz.

Quando ligou-se ao mundo do hip-hop, Athayde conviveu com setores mais radicaliza­dos do movimento negro. “Eles tinham esse discurso contra o sistema. Preto que tirava o pé da lama era preto que virou branco, era xingado como se estivesse traindo”, lembra.

“Eu ficava sempre perguntand­o qual é o mal em você trabalhar muito e ter sorte ou competênci­a para poder ter uma vida melhor. O favelado é um empreended­or por excelência. Desde o momento em que ele está numa feira, carregando o carrinho de uma madame ou a bolsa dos outros”, diz.

A criação do partido Frente Favela Brasil é um passo ambicioso, que dá um braço político ao projeto da Cufa e da Holding.

“Até aqui os negros e a favela ou fazem parte do puxadinho de algum partido ou estão do lado de fora do jogo, vendendo cachorro-quente; nós queremos participar do jogo”, anuncia.

Athayde, contudo, diz que não vai fazer parte do partido e não será candidato. Mas tem certeza de que o alcance que suas iniciativa­s já atingiram vai favorecer a Frente Favela Brasil na hora de falar para os moradores de favelas e a população negra.

“Mas não será um partido para criar cisão racial ou lutar contra brancos. Todo mundo pode participar.

Já tem até japonês no partido”, ressalva.

Athayde pretende que a nova sigla entre em cena com vida própria nas eleições de 2020. “Ainda temos muito para discutir. Mas o plano que estou propondo para o ano que vem é apresentar candidatos ao Legislativ­o em todos os Estados por outros partidos. A ideia é criar uma bancada da favela ou de negros. E depois juntamos todo mundo no partido em 2020.”

“igualdade de oportunida­de, porque as coisas não são iguais. Tem uma parte da sociedade que está sendo formada para ser soldado e uma outra parte sendo formada para ser general

 ?? Ricardo Borges/Folhapress ?? O empresário e ativista Celso Athayde, agora idealizado­r de um novo partido, na sede da Central Única das Favelas em Madureira, no Rio, no viaduto sob o qual morou quando criança
Ricardo Borges/Folhapress O empresário e ativista Celso Athayde, agora idealizado­r de um novo partido, na sede da Central Única das Favelas em Madureira, no Rio, no viaduto sob o qual morou quando criança

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