Na Europa, como na Amé-
Folha - Em seu livro “La Larga Agonía de la Nación Católica”, o senhor relaciona o fundo religioso da formação da Argentina e dos Estados latino-americanos com o populismo. Como isso se dá hoje?
Loris Zanatta - O fenômeno do mito da nação católica está difundido em toda a América Latina por razões históricas: a colonização, a imigração e a necessidade de formar a identidade dos novos países.
Há dificuldade dos que vêm da tradição colonial latina e católica de aceitar a Ilustração, que seria algo vindo de fora. Na tradição ilustrada, o povo soberano é o povo da Constituição. Esse povo é dotado de direitos e se concebe um pacto racional e plural entre os atores.
Já o mito da nação católica é populista, pois nele se pensa no povo como algo que está acima do pacto político-racional. Nele, o povo é algo que identifica um espírito, uma essência, uma identidade da nação, acima da Constituição. Isso nunca mudou?
De certo modo, com o retorno à democracia. Nos anos 1980, houve maior aceitação do modelo liberal de democracia, com separação de poderes, igualdade, liberdades individuais e economia de mercado. Mas isso não eliminou a ideia de que há um povo mítico acima da Constituição. Isso se vê nos recentes movimentos populistas. Como vê o caso da Venezuela?
A Venezuela é uma herdeira explícita da tradição populista. Essa tradição veio de antes, com o castrismo, e antes dele, com o peronismo.
No chavismo, há a ideia de um povo mítico acima da Constituição. Quando Nicolás Maduro perdeu as eleições legislativas em 2015, não foi uma derrota qualquer. Se você fala em nome do povo, e só consegue 30% dos votos, você é um populista órfão de povo.
Então, ele afirmou: “não importa, eu seguirei governando com o povo”. O que ele quer dizer? Que o povo da Constituição, o da Ilustração não importa. Seu povo é o povo mítico do relato da nação, e portanto o único legítimo. Muitos creem nisso, e é por isso que o regime perdura. É o impulso religioso?
Sim, pois evoca-se o povo como se fosse o povo bíblico que caminha para a redenção. E há um outro povo, que é o inimigo, que representa o pecado. São os chamados “oligarcas”. Então, mesmo que os “oligarcas” ganhem uma eleição e sejam maioria —ainda que seja um contrassenso uma oligarquia virar maioria—, para os líderes populistas isso não importa. Porque são eles que encarnam o povo mítico, cuja maioria não se conta nas urnas, mas sim na adesão à ideia de essência da nação. Nos movimentos populistas recentes, a Constituição foi um recurso ao qual muitos apelaram. Rafael Correa, Hugo Chávez, Evo Morales. Todos reescreveram a Constituição de seus países. Por que, se não se importam com as leis?
No século 19, os países hispanoamericanos viveram enorme instabilidade. Então, os caudilhos tomavam o poder com armas e se legitimavam com uma Constituição.
Mas há diferentes formas de se conceber uma Carta. Ela pode ser um pacto entre todos, que fixa os limites e as regras do jogo, a Constituição liberal.
No caso desses fenômenos populistas, a Constituição tem sido um documento que con- firma que o passado de pecado acabou e que a redenção começou. A Constituição dos populistas é uma nova Bíblia. Como o sr. vê a nova Constituição que Maduro quer fazer?
O governo perdeu a eleição de 2015. A Constituição que sairá dessa Assembleia será o instrumento para legitimar o novo momento da revolução. Se a visão religiosa do Estado sempre foi tão importante, por que os países latino-americanos incluíram o laicismo entre suas leis?
Enquanto essas novas sociedades foram elitistas e liberais, o pensamento laico era o recurso para se desvincular da tradição ibérica, vista como o atraso. O problema se deu quando veio o momento da inclusão das massas. E o projeto de transmitir para as massas os conceitos liberais e democráticos, que incluía as ideias laicas, fracassou.
O ingresso das massas na vida política é essencial para entender os populismos.
O que tinham em comum o salazarismo, o franquismo, o fascismo, o varguismo, o PRI mexicano e o peronismo? O “ar de família”. Foram todos fenômenos que compartilharam um desejo de voltar a reunir a dimensão política e a religiosa. Fundaram religiões políticas. Todos falavam em nome da essência da nação, e nunca se apresentaram como partidos entre outros partidos. O colonialismo teve influência nesses fenômenos também?
Sim, as colônias estavam baseadas numa concepção orgânica, onde a unidade política e a unidade religiosa estavam vinculadas. Uma sociedade hierárquica, onde cada um tinha seu lugar.
Por isso, para a camada popular, os valores liberais e democráticos de laicidade, pluralismo e democracia pertencem a um mundo elitista e longínquo. Para as bases, o imaginário religioso, que dava sentido de pertencimento, era e ainda é mais importante.
Quando chegaram líderes que se apegaram a esse imaginário religioso, as massas os seguiram. Eram os novos redentores. Perón, Castro, e tantos outros, vieram impregnados de uma ideia de salvação. Num artigo recente, o senhor disse que uma parte da esquerda europeia alimenta um estereótipo da esquerda latino-americana que prejudica a região. Por quê? E como classificar os sistemas não democráticos?
Fujimori foi ditatorial, porque mesmo tendo sido eleito, houve violações de direitos humanos e se submeteu a Justiça ao Executivo.
Mas um instrumento útil para definir ditaduras é o que dizem ser. Fujimori dizia que o fechamento do Congresso e as medidas de exceção eram para “reorganizar” algo que estava desorganizado. Os generais brasileiros, chilenos e argentinos também diziam que havia desordem, que eles organizariam, e que depois se podia voltar à democracia.
A ditadura diz que vai reestabelecer a ordem, mas não tem ideologia. A ideologia diferencia a ditadura de um regime totalitário?
Sim, pois os totalitarismos têm a ideia de redimir, de revolucionar. Eles não pensam que, um dia, terminarão a tarefa e se voltará à democracia.
Na Venezuela há um Estado totalitário, porque o chavismo se apresenta como a nova religião, que fundou uma nova ordem. Ou seja, há uma ideologia. O peronismo era ensinado nas escolas argentinas, como o castrismo nas escolas cubanas, enquanto Chávez mudou os símbolos nacionais.
Foram e são totalitarismos.
pensa no povo como algo que está acima do pacto políticoracional. O povo é algo que identifica um espírito, uma identidade da nação, acima da Constituição