Folha de S.Paulo

A lista da floresta

- REINALDO JOSÉ LOPES

A RIGOR, não existe nada que seja realmente chato no mundo ao nosso redor —as coisas só parecem chatas para quem não presta atenção direito nelas.

Essa gotinha de sabedoria, que não veio da minha cachola (a frase é um dos mantras do romance “Summerland”, de Michael Chabon, um épico de fantasia sobre pais e filhos, o Apocalipse e aquele esporte de gringo supostamen­te entediante, o beisebol), talvez seja o melhor jeito de chamar a atenção do gentil leitor para um assunto que não está no topo da lista dos que despertam fortes emoções: contar dezenas de milhares de espécies de plantas, uma a uma.

Uma lista desse tipo acabou de ser publicada por cientistas brasileiro­s e seus colegas do exterior na revista científica “Pnas”. O resultado é o elenco mais confiável da biodiversi­dade vegetal da Amazônia obtido até agora: 14.003 espécies, das quais 6.727 são árvores propriamen­te ditas. Se a informação ficar por isso mesmo, a chance de você emitir um sonoro “e daí?” e usar o papel em que esta coluna foi impressa para embrulhar peixe é, admito, elevada. Hora de dar vida a esses números, portanto.

Considere, em primeiro lugar, que catálogos de diversidad­e de espécies, por mais empoeirado­s que pareçam, são tão importante­s para um ecossistem­a quanto o RG e o é para identifica­r você como indivíduo.

Saber quantas e quais espécies existem num lugar é o primeiro passo para entender a natureza daquele sistema de relações vivas, as forças e interações que regem o funcioname­nto dele —incluindo aí aspectos que não parecem depender das plantas à primeira vista, mas que, num lugar como a Amazônia, são gerenciado­s por elas em larga medida (está mais do que claro, por exemplo, que as árvores amazônicas “fabricam” sua própria chuva, lançando nos ares fragmentos de matéria vegetal em torno dos quais as gotículas d’água se condensam).

É lógico que os botânicos profission­ais ou amadores vêm catalogand­o espécies vegetais da Amazônia há centenas de anos, desde que o sueco Lineu (1707-1778) inventou o sistema de designar cada ser vivo com nomes duplos em latim (nomes como Berthollet­ia excelsa, a castanheir­a da castanha-do-pará).

E é óbvio também que as coisas têm mudado sem parar desde os tempos do velho Lineu: algumas plantas que pareciam pertencer à mesma espécie hoje são identifica­das como membros de espécies diferentes, outras classifica­das separadame­nte foram unidas —o potencial para a bagunça é quase ilimitado.

Daí a importânci­a de critérios para contornar a bagunça, adotados pela equipe do novo estudo. Domingos Cardoso, da UFBA, junto com colegas como Rafaela Forzza e Haroldo de Lima, do Jardim Botânico do Rio, levaram em conta apenas as listas de espécies baseadas em exemplares abrigados em museus e herbários. Mais importante, tiveram a pachorra de checá-las com especialis­tas (acabaram descobrind­o que listas anteriores tinham incluído plantas dos Andes ou até da Austrália na biodiversi­dade amazônica...).

No fim das contas, descobrira­m ervas, arbustos e epífitas (plantas que se apoiam em espécies maiores, como as orquídeas) são ainda mais diversific­adas do que as célebres árvores da Amazônia. O resultado é um mapa essencial para entender e preservar essa diversidad­e, embora ainda haja muita coisa a ser descoberta numa região tão vasta.

Brasileiro­s acabam de publicar o elenco mais confiável da biodiversi­dade vegetal da Amazônia

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