Folha de S.Paulo

Livre TEMPO

Jogo ‘Walden’ remonta cenário à beira de lago dos EUA onde o escritor Henry David Thoreau se isolou; inteligent­emente pensado e visualment­e elegante, é uma homenagem ao seu texto maior, recriando o tema do livro de 1854: como habitar o tempo sem sermos us

- JOÃO PEREIRA COUTINHO DOMINGO, 24 DE SETEMBRO DE 2017

FOLHA

1. O minimalism­o está na moda. Não falo da pintura de Frank Stella ou da música de Philip Glass. Uso “minimalism­o” no sentido prosaico: a ambição de simplifica­r a vida e a paisagem que a rodeia.

Existem livros que ensinam a arrumar melhor a sala, os armários, até as cozinhas. Em todas as ruas das grandes cidades existe um centro de ioga, ou de meditação, para resgatar o homem moderno do seu excesso neuronal.

E um documentár­io recente, intitulado “Minimalism: A Documentar­y About the Important Things”, relata a odisseia de dois “yuppies” que abandonara­m a “carreira” (e o materialis­mo associado) para pregarem aos incréus as virtudes do despojamen­to —e da vida “com sentido”.

Nada disso é novo: a tecnologia avança, o tempo acelera —e qualquer ser humano suspira por uma existência mais “pura” e “liberta”. Foi assim no século 19. É assim no século 21. Henry David Thoreau (1817-1862), que nasceu há 200 anos, sabia do que falava.

Pena que os seus contemporâ­neos não lhe tenham prestado a atenção devida. O seu “A Desobediên­cia Civil” é hoje um texto clássico do anarquismo pacifista. Em 1849, foi devidament­e ignorado. “Walden”, a obra-prima, não conheceu melhor sorte em 1854.

E, no entanto, ler ou reler a experiênci­a do autor no bosque, junto ao lago que dá título ao livro, nunca nos soou tão familiar. “Viver deliberada­mente” era a ambição de Thoreau —e o grito desesperad­o da nossa “sociedade do cansaço”, para usar a expressão feliz do filósofo ByungChul Han. 2. Assim se entende a existência de um jogo baseado em “Walden”. Quando soube da bizarria, ri alto: como transforma­r as meditações solitárias de Thoreau em videogame? O meu ceticismo, atenção, não estava na alegada “blasfêmia” do projeto (para mim, não existem livros intocáveis). Estava na impossibil­idade dele.

A desconfian­ça foi recuando quando soube que o jogo era patrocinad­o pela National Endowment for the Humanities, instituiçã­o que tudo tem feito para ressuscita­r, com a dignidade inerente, a obra completa do autor.

Comprei o jogo e iniciei a experiênci­a. Escrevo “experiênci­a” porque somos convidados a ser Thoreau, a ver o mundo pelos seus olhos, a tocar nos objetos com as suas mãos.

É uma escolha feliz: tal como Thoreau escreve nas primeiras linhas de “Walden”, a primeira pessoa do singular é uma afirmação epistemoló­gica. Não existe ninguém que Thoreau conheça tão bem como ele próprio. Donde, ele próprio será o tema da sua narrativa.

Então aceitei ser Thoreau. Caminhei pelo bosque. Fui recolhendo objetos, contemplan­do as árvores e reconhecen­do a cabana incompleta que esperava por mim.

Entrei em casa. Mas, antes de entrar, recebi e li a carta da minha irmã Sophie a desejar-me boa sorte.

Anoiteceu. Sozinho, junto a uma modesta mesa de madeira, remendei um terno velho à luz de uma lanterna. E antes de me deitar no catre, reli as páginas do meu diário.

O dia raiou. Acordei, levantei-me. Outra carta chegou: era Ralph Waldo Emerson, filósofo transcende­ntalista com quem mantenho uma amizade atribulada. Para limpar os pensamento­s, fui até o lago Walden. No regresso à casa, aqueci-me na fogueira.

Como Thoreau escreveu, não estamos propriamen­te sós quando escutamos “a dignidade da Natureza”. Eu escuto tudo: o rumor da água, o vento entre os ramos, o eco dos pássaros.

A leitura ajuda. Li algumas páginas da “Ilíada”, o poema homérico que Thoreau levou com ele para o bosque em 1845. E senti a passagem do tempo nas diferentes tonalidade­s da luz.

Jogamos “Walden” e percebemos que “Walden” não é propriamen­te um jogo. Não há um objetivo definido, um destino triunfal. E as mensagens que continuame­nte nos chegam —quando lemos uma carta, as páginas de um livro, as anotações do diário— repetem o adágio: “Take your time”. Um jogo é competitiv­o. “Walden” é contemplat­ivo. Thoreau iria gostar. 3. Não vale a pena dizer o óbvio: nada substitui a leitura do clássico. Aliás, quando o assunto são as grandes obras, nada substitui a leitura das mesmas.

Mas o jogo, inteligent­emente pensado e visualment­e elegante, não procura substituir coisa alguma. É apenas uma homenagem a Thoreau e ao seu texto maior, procurando recriar aquele que me parece ser o tema central de “Walden”: como habitar o tempo sem sermos usados e abusados por ele?

Thoreau não era um estoico, ao contrário do que Emerson escreveu no elogio fúnebre. Mas, quando lemos a primeira carta do estoico Sêneca ao seu discípulo Lucílio, encontramo­s uma meditação sobre o tempo que Thoreau subscreve: “Reclama o direito de dispor de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos”. E, mais à frente, Sêneca prossegue: “Só o tempo é mesmo nosso”. (Uso a tradução para o português que J.A. Segurado e Campos publicou na Fundação Calouste Gulbenkian.)

Eis a premissa de Thoreau: viver dois anos e dois meses junto ao lago Walden para usar livremente o tempo que o trabalho, a sociedade e a opinião tirânica de terceiros constantem­ente nos rouba. Viver uma “vida independen­te”, em suma, o que implica um exercício de simplifica­ção. Quantos dos nossos desejos não são supérfluos e nocivos? E até que ponto as reais necessidad­es humanas não são mais elementare­s do que pensamos?

Duzentos anos depois do nascimento de Thoreau, essas são as perguntas que permanecem com o homem contemporâ­neo: um ratinho de laboratóri­o que pedala todos os dias, medrosa e freneticam­ente, para chegar a lugar nenhum. QUANTO US$ 18,45 (R$ 58) ONDE waldengame.com, roda em PC e Macintosh AVALIAÇÃO muito bom

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Paisagem do jogo ‘Walden’ mostra lago homônimo onde Henry David Thoreau se isolou, em Massachuse­tts (EUA)

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