Folha de S.Paulo

A marca da escravidão

Uma outra forma de interpreta­r o Brasil

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público. É como ver um filme sobre a Roma antiga cheio de cenas românticas que foram inventadas no século 18. Não obstante, o país inteiro acredita nessa bobagem. ESCRAVIDÃO Os adeptos dessa interpreta­ção dominante parecem não se dar conta de que, em uma sociedade, cada indivíduo é criado pela ação diária de instituiçõ­es concretas, como a família, a escola, o mundo do trabalho.

No Brasil Colônia, a instituiçã­o que influencia­va todas as outras era a escravidão (que não existia em Portugal, a não ser de modo tópico). Tanto que a (não) família do escravo daquele período sobrevive até hoje, com poucas mudanças, na (não) família das classes excluídas: monoparent­al, sem construir os papéis familiares mais básicos, refletindo o desprezo e o abandono que existiam em relação ao escravo.

Também no mundo do trabalho a continuida­de impression­a. A “ralé de novos escravos”, mais de um pública informal de todas as grandes cidades brasileira­s.

A nossa elite econômica também é uma continuida­de perfeita da elite escravagis­ta. Ambas se caracteriz­am pela rapinagem de curto prazo. Antes, o planejamen­to era dificultad­o pela impossibil­idade de calcular os fatores de produção. Hoje, como o recente golpe comprova, ainda predomina o “quero o meu agora”, mesmo que a custo do futuro de todos.

É importante destacar essa diferença. Em outros países, as elites também ficam com a melhor fatia do bolo do presente, mas além disso planejam o bolo do futuro. Por aqui, a elite dedica-se apenas ao saque da população via juros ou à pilhagem das riquezas naturais. INTERMEDIÁ­RIAS Historicam­ente, a polarizaçã­o entre senhores e escravos em nossa sociedade permaneceu até o alvorecer do século 20, quando surgiram dois novos estratos por força do capitalism­o industrial: a classe trabalhado­ra e a classe média.

Em relação aos trabalhado­res, a violência e o engodo sempre foram o tratamento dominante. Com a classe média, porém, a elite se viu contrapost­a a um desafio novo.

A classe média não é necessaria­mente conservado­ra. Tampouco é homogênea. O tenentismo, conhecido como nosso primeiro movimento político de classe média, na década de 1920, já revelava essas caracterís­ticas, pois abrigava múltiplas posições ideológica­s.

A elite paulistana, tendo perdido o poder político em 1930, precisava fazer com que a heterodoxi­a rebelde da classe média apontasse para uma única direção, agora em conformida­de com os interesses das camadas mais abastadas. Como naquele momento os endinheira­dos de São Paulo não controlava­m o Estado, o caminho foi dominar a esfera pública e usá-la como arma.

O que estava em jogo era a captura intelectua­l e simbólica da classe média letrada pela elite do dinheiro, para a formação da aliança de classe dominante que marcaria o Brasil dali em diante.

O acesso ao poder simbólico exige a construção de “fábricas de opiniões”: a grande imprensa, as grandes editoras e livrarias, para “convencer” seu público na direção que os proprietár­ios queriam, sob a máscara da “liberdade de imprensa” e de opinião.

A imprensa, todavia, só distribui informação e opinião. Ela não cria conteúdo. A produção de conteúdo é monopólio de especialis­tas treinados: os intelectua­is. A elite paulistana, então, constrói a USP, destinando-a a ser uma espécie de gigantesco “think tank” do liberalism­o conservado­r brasileiro, de onde saem as duas ideias centrais dessa vertente: as noções de patrimonia­lismo e de populismo. LAVA JATO Enquanto conceito, o patrimonia­lismo procede a uma inversão do poder social real, localizand­o-o no Estado, não no mercado. Abre-se espaço, assim, para a estigmatiz­ação do Estado e da política sempre que se contraponh­am aos interesses da elite econômica. Nesse esquema, a classe média cooptada escandaliz­a-se apenas com a corrupção política dos partidos ligados às classes populares.

A noção de populismo, por sua vez, sempre associada a políticas de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importânci­a da soberania popular como critério fundamenta­l de uma sociedade democrátic­a —afinal, como os pobres (“coitadinho­s!”) não têm consciênci­a política, a soberania popular sempre pode ser posta em questão.

É impression­ante a proliferaç­ão dessa ideia na esfera pública a partir da sua “respeitabi­lidade científica” e, depois, pelo aparato legitimado­r midiático, que o repercute todos os dias de modos variados.

As noções de patrimonia­lismo e de populismo, distribuíd­as em pílulas pelo veneno midiático diariament­e, são as ideias-guia que permitem à elite arregiment­ar a classe média como sua tropa de choque. Essas noções legitimam a aliança antipopula­r construída no Brasil do século 20 para preservar o privilégio real: o acesso ao capital econômico por parte da elite e o monopólio do capital cultural valorizado para a classe média. É esse pacto que permite a união dos 20% de privilegia­dos contra os 80% de excluídos.

A atual farsa da Lava Jato é apenas a máscara nova de um jogo velho que completa cem anos.

Em conluio com a grande mídia, não se atacou apenas a ideia de soberania popular, pela estigmatiz­ação seletiva da política e de empresas supostamen­te ligadas ao PT —o saque real, obra dos oligopólio­s e da intermedia­ção financeira, que capturam o Estado para seus fins, ficou invisível como sempre. Destruiu-se também, com protagonis­mo da Rede Globo nesse particular, a validade do próprio princípio da igualdade social entre nós.

O ataque seletivo ao PT, de 2013 a 2016, teve o sentido de transforma­r a luta por inclusão social e maior igualdade em mero instrument­o para um fim espúrio: a suposta pilhagem do Estado.

Desqualifi­cada enquanto fim em si mesma, a demanda pela igualdade se torna suspeita e inadequada para expressar o legítimo ressentime­nto e a raiva que os excluídos sentem, mas que agora não podem mais expressar politicame­nte.

Assim, abriu-se caminho para quem surfa na destruição dos discursos de justiça social e de valores democrátic­os —Jair Bolsonaro como ameaça real é filho do casamento entre a Lava Jato e a Rede Globo.

O pacto antipopula­r das classes alta e média não significa apenas manter o abandono e a exclusão da maioria da população, eternizand­o a herança da escravidão. Significa também capturar o poder de reflexão autônoma da própria classe média (assim como da sociedade em geral), que é um recurso social escasso e literalmen­te impagável.

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