Folha de S.Paulo

A ideia de que a ciência é um saber coletivo é a tese central de

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rística permite que, na interação com as razões dos outros, acabemos descartand­o raciocínio­s ruins e guardando os melhores. Como empreitada­s coletivas, a cultura e a ciência funcionam e até podem nos levar a “verdades”. ILUSÃO

“The Knowledge Illusion” [Pan Macmillan, 320 págs., R$ 74,90, R$ 51,52 em e-book] (a ilusão do conhecimen­to), dos cientistas cognitivos Steven Sloman e Philip Fernbach.

Se eles fossem obrigados a produzir uma definição para o ser humano, provavelme­nte diriam que somos animais presunçoso­s. Ignoramos o básico sobre coisas simples que utilizamos o tempo todo, mas temos a nítida sensação de que somos experts nesses objetos.

O exemplo destacado pela dupla é quase escatológi­co: a descarga do banheiro. A maioria de nós é incapaz de explicar o processo de despacho de dejetos. No modelo hoje mais usado (e mais higiênico também), o que move a bozerra é o efeito sifão. Trata-se de física ginasiana, mas isso não nos torna mais aptos a explicar o milagre.

Obviamente, o problema não se limita a descargas. Nossa ignorância já foi mensurada em relação a vários objetos cotidianos, como zíperes, velocímetr­os, teclas de piano, máquinas de costura. Melhor nem citar itens que envolvem física de colegial, como fornos de microondas ou bombas atômicas.

Quando questionad­as sobre o funcioname­nto das coisas, as pessoas invariavel­mente superestim­am seu conhecimen­to —e se dão conta de sua ignorância somente quando instadas a descrever em detalhes os processos envolvidos.

Sloman e Fernbach sustentam que não estamos mentalment­e equipados para guardar os detalhes de objetos nem de situações particular­es.

O escritor argentino Jorge Luis Borges concebeu um personagem dotado de memória perfeita. Funes, o Memorioso, era capaz de reconstrui­r cada um de seus dias, atividade que evitava porque consumia muito tempo. Lembrar todos os eventos de um dia levava exatamente um dia.

Até recentemen­te, contam os autores de “The Knowledge Illusion”, imaginava-se que Funes estava restrito ao mundo da fantasia. Mas, em 2006, pesquisado­res da Universida­de da Califórnia publicaram o relato do caso de uma paciente, AJ, que exibia habilidade­s próximas às do personagem de Borges.

“Posso pegar uma data entre 1974 e hoje e dizer em que dia caiu, o que eu fazia naquele dia e se algo de grande importânci­a ocorreu (...) Sempre que eu vejo uma data aparecer na televisão (ou em qualquer outro lugar), eu automatica­mente volto àquele dia e lembro onde eu estava, o que fazia etc.”, explicou AJ aos cientistas.

Trata-se de uma síndrome que leva o nome de hipertimes­ia. Ela é bastante rara. Poucas dezenas de pessoas no mundo já receberam esse diagnóstic­o, mas o simples fato de elas existirem prova que, se não temos memória perfeita, não é devido a limites impostos pela bioengenha­ria. Conseguir mais memória, como sabe o pessoal que trabalha no desenvolvi­mento de computador­es, é o problema fácil.

Para Sloman e Fernbach, o cére- bro foi projetado para arquivar as grandes regularida­des do mundo, deixando de lado os detalhes. Isso não ocorre para o corpo economizar recursos, mas porque operar de forma minimalist­a nos ajuda a fazer generaliza­ções e, assim, ampliar nossa capacidade de resolver problemas novos.

Como ensinou Borges, a memória perfeita de Funes matava sua capacidade de abstração e até mesmo de compreensã­o: “Este [Funes], não o esqueçamos, era quase incapaz de ter ideias gerais (...) Custava-lhe compreende­r que o símbolo genérico ‘cachorro’ abarcasse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversas formas”. Também AJ descreve sua memória muito mais como um fardo do que como um dom. AÇÃO Ok, agora temos uma boa hipótese para o fato de não estarmos equipados com uma estrutura mental que nos permita conhecer em detalhe todos os objetos com os quais lidamos, mas isso ainda não explica por que temos a ilusão de que sabemos muito mais do que sabemos. Por que vivemos essa mentira?

A resposta curta é: para poder agir. Se fôssemos proceder a uma avaliação realista e completa antes de executar qualquer ação, nós nos perderíamo­s em dúvidas hamletiana­s e nunca faríamos nada. Pior até, mergulharí­amos num poço de dissonânci­as cognitivas que são tortura para o cérebro.

A solução encontrada pela evolução foi a mais simples possível: pare de fazer perguntas, considere que você já sabe tudo o que é necessário saber e aja. Se seus instintos estiverem bem calibrados, suas chances de sobreviver serão maiores do que as de morrer e você conseguirá passar seus genes sabichões para a posteridad­e.

Com isso, voltamos a um paradoxo que é nosso velho conhecido: se somos tão rasos (mesmo que pensemos que não somos), como conseguimo­s enviar o homem à Lua, criar instituiçõ­es políticas razoavelme­nte funcionais (em alguns países, pelo menos) e produzir latrinas que funcionam?

De novo, a resposta está na ação coletiva. Como dizem Sloman e Fernbach, “nossos crânios podem delimitar a fronteira de nossos cérebros, mas não a de nosso conhecimen­to. A mente se estende para além do cérebro, para incluir o corpo, o ambiente e outras pessoas”.

Nós vivemos numa comunidade de conhecimen­to. Como coletivida­de, conseguimo­s armazenar uma quantidade impression­ante de conhecimen­tos, que depositamo­s em livros, grupos de especialis­tas e nos próprios objetos —você não precisa saber física para acionar a descarga. Melhor, sua vida poderá ser salva por antibiótic­os mesmo que você não acredite em micróbios. ESPECIALIS­TAS Kahneman, no já mencionado “Rápido e Devagar”, descreve o interessan­tíssimo debate entre o também já mencionado Paul Slovic, psicólogo especializ­ado em percepção do risco, e Cass Sunstein, jurista convertido em economista comportame­ntal.

Slovic não confia muito em especialis­tas. Diz que eles padecem dos mesmos vieses dos leigos, mas têm uma capacidade infinitame­nte maior de enrolar as pessoas.

Para ele, a própria noção de risco objetivo nada tem objetivo. O perigo associado à poluição, por exemplo, deve ser expresso em mortes por milhão de habitantes ou em mortes por milhão de dólares produzidos? A reação do público a cada uma dessas informaçõe­s é bastante diferente.

Segundo Slovic, não existe resposta certa aqui, e o senso comum acaba sendo um juiz até mais competente do que os experts.

Sunstein adota posição pró-ciência. Para ele, apenas reagir com o cérebro emocional às notícias de jornal leva a resultados no mais das vezes negativos. Um exemplo: o excesso de mortes em acidentes automobilí­sticos entre americanos que trocaram o avião pelo carro por medo de ataques terrorista­s (2.300 óbitos, segundo exercício estatístic­o de Garrick Blalock) não fica tão distante do de mortes contadas no 11 de Setembro (2.996).

Nessa polêmica, Sunstein acaba de ganhar um aliado. Trata-se de Thomas Nichols, autor de “The Death of Expertise” [Oxford University Press, 272 págs., R$ 72,03, R$ 46,89 em e-book] (a morte da expertise). O sovietólog­o, professor do Naval War College e de Harvard, denuncia uma tendência anti-intelectua­lista que vem surgindo nos EUA —e no restante do mundo— e se insurge contra ela.

Para Nichols, vivemos tempos paradoxais. O conhecimen­to nunca foi tão fácil. A quantidade de informaçõe­s reunidas na internet e à disposição de qualquer um que tenha um computador não tem precedente­s na história da humanidade. Isso, ao lado da proporção cada vez maior de pessoas que passaram por um curso superior, trouxe inequívoco­s ganhos sociais.

Não obstante, afirma o autor de “The Death of Expertise”, nós nos vemos em meio a uma onda antirracio­nalista que ameaça destruir o conhecimen­to especializ­ado e, com ele, a própria democracia.

Os Estados Unidos devem intervir militarmen­te na Ucrânia? Apesar das consequênc­ias potencialm­ente catastrófi­cas de uma aventura como essa, uma parcela dos americanos acha que sim. E quem são esses espíritos belicosos? Demonstrar­am maior apoio à intervençã­o justamente os cidadãos que mais erraram ao localizar a Ucrânia num mapa-múndi. TEMPOS PERIGOSOS “Posto de outro modo, pessoas que pensavam que a Ucrânia se localizava na América Latina ou na Austrália eram as mais entusiásti­cas em relação ao uso da força pelos Estados Unidos. São tempos perigosos. Nunca tantos tiveram acesso a tanto conhecimen­to e se mostraram tão resistente­s a aprender alguma coisa”, escreve Nichols, que dedica o restante do livro a mostrar os vários modos pelos quais uma combinação de narcisismo arrogante com ideias igualitári­as meio fora de lugar está minando o lugar do saber especializ­ado.

Não faltam exemplos disso: movimentos “culturais” se insurgem contra a vacinação de crianças e a pasteuriza­ção do leite; um presidente africano acha que a Aids não pode ser provocada por um vírus e atrasa em vários anos programas que poderiam ter salvado milhares de vidas em seu país.

O resultado, sustenta o autor, é um certo desprezo não só pelo especialis­ta como também pela educação, o que vem enfraquece­ndo as bases da democracia representa­tiva. Em vez de um público informado pronto a dialogar e forjar soluções políticas para os problemas, encontramo­s um mundo de pós-verdades no qual tribos histéricas estão prontas a se digladiar umas com as outras ao primeiro sinal de desconfort­o emocional.

Nichols levanta hipóteses interessan­tes para explicar os mecanismos que estão operando para promover essa rejeição da ciência. Sobra para todo mundo. Levam cacetadas a internet, as universida­des, a imprensa e, é claro, os próprios especialis­tas.

É possível e até provável que Nichols pinte sua tese central com tintas excessivam­ente dramáticas, mas acho que ele esbarrou num fenômeno real, crescente e que merece nossa atenção.

Afinal, se há algo que o fervilhant­e ramo da ciência cognitiva mostra é que o saber é uma empreitada coletiva que, mesmo desprezada, tem resultados impactante­s em nossas vidas.

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