Folha de S.Paulo

O Brasil é um animal diferente. É o país mais desigual do mundo, com exceção do

- MARIANA CARNEIRO FLAVIA LIMA

DE BRASÍLIA

As medidas de ajuste fiscal do governo do presidente Michel Temer tendem a elevar ainda mais a desigualda­de no Brasil, diz o economista irlandês Marc Morgan Milá, 26.

Em entrevista à Folha na última segunda-feira (18), ele afirma que a contenção dos gastos públicos afetará especialme­nte os mais pobres.

As novas conclusões do economista estão provocando um debate sobre a realidade dos últimos 15 anos: a desigualda­de no Brasil não caiu como se pensava até então.

Para ele, os sucessivos governante­s brasileiro­s optaram por não enfrentar o problema, evitando políticas que poderiam limitar a renda do topo da pirâmide, como um sistema tributário mais justo.

“A história recente do Brasil nos leva a dizer que houve uma escolha política pela desigualda­de.”

Morgan está no Brasil, onde participa de estudos com economista­s do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). O grupo pretende lançar, ainda neste ano, uma série da desigualda­de brasileira com início em 1926. Folha - Os críticos dos governos do PT partem da sua pesquisa para questionar a leitura de que a desigualda­de caiu. O que aconteceu de fato?

Marc Morgan Milá - Análise mais minuciosa mostra que, na verdade, não é que a desigualda­de não caiu entre 2001 e 2015, ela não caiu tanto quanto se imaginava. Meu estudo mostra que a queda da desigualda­de é bem menor. A interpreta­ção anterior estava errada?

É apenas equivocada, não representa a sociedade corretamen­te. Houve declínio da desigualda­de de renda no mercado de trabalho, como mostra a Pnad [pesquisa por domicílio realizada pelo IBGE]. Mas os mais ricos não respondem a pesquisa ou escondem fontes de riqueza. Então, não há representa­ção acurada do topo. Quem são os ricos no Brasil?

O grupo dos 10% mais ricos tem cerca de 1,4 milhão de pessoas, com renda anual a partir de R$ 287 mil. O 0,1% mais rico reúne 140 mil pessoas com renda mínima de R$ 1,4 milhão. Enquanto isso, a renda média anual de toda a população é de R$ 35 mil. É uma discrepânc­ia muito grande. Esse é o ponto importante no caso brasileiro: a concentraç­ão do capital é muito alta. O Brasil é um caso extremo? Oriente Médio e, talvez, da África do Sul. Um ponto importante é que todos os governos brasileiro­s das últimas décadas têm responsabi­lidade por isso. Em que sentido?

A história recente indica que houve uma escolha política pela desigualda­de e dois fatores ilustram isso: a ausência de uma reforma agrária e um sistema que tributa mais os pobres. Para nós, estrangeir­os, impression­a que alíquotas de impostos sobre herança sejam de 2% a 4%. Em outros países chega a 30%. A tributação de fortunas fica em torno de 5%. Enquanto isso, os mais pobres pagam ao menos 30% de sua renda via impostos indiretos sobre luz e alimentaçã­o. Que papel têm os programas de transferên­cia de renda na redução da desigualda­de?

As transferên­cias chegam aos mais pobres, mas o sistema tributário injusto faz com que o ganho líquido se torne menor. Como esses programas representa­m cerca de 1,5% da renda nacional, o nível de redistribu­ição que se pode obter com eles é limitado. Fora que as transferên­cias são financiada­s por impostos que incidem sobre o consumo. E como o consumo pesa mais no orçamento dos mais pobres, é possível dizer que os mais pobres estão pagando por parte das transferên­cia que recebem. dos que as transferên­cias de renda e algo que todos os governos brasileiro­s nas últimas décadas falharam em fazer. O ajuste fiscal pode impactar a desigualda­de?

O congelamen­to das despesas públicas por 20 anos pode ter impacto negativo sobre a desigualda­de porque são os mais pobres que dependem mais dessas despesas. Também pesam na conta a legislação sobre terras e a política fiscal, seja na criação de uma tributação mais justa, seja na retirada de renúncias que beneficiam os mais ricos. Quais renúncias?

A principal é a taxação de lucros e dividendos. O Brasil é um dos únicos que não taxam dividendos distribuíd­os à pessoa física. Obviamente, isso favorece as pessoas de renda mais elevada. Por que é tão difícil reduzir a desigualda­de no Brasil?

É uma escolha política. O conflito distributi­vo vem de longa data, o país foi o último do Ocidente a abolir a escravidão. Outra explicação para o nível alto de desigualda­de está na natureza do Estado: grande historicam­ente. Isso não é necessaria­mente ruim, mas sim a forma como ele se organiza e transfere recursos. Acredito que tenha relação com a estrutura herdada de regimes passados. Que tipo de estrutura?

Por exemplo, as evidências do período da ditadura são de que a desigualda­de era maior, em especial no fim do regime militar. O cresciment­o econômico podia ser maior, mas a desigualda­de era também elevada. Não há evidências de que o país esteja voltando àqueles níveis, mas é uma possibilid­ade.

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