Folha de S.Paulo

Bem comum ou guerra tribal

- JOEL PINHEIRO DA FONSECA

OS RÓTULOS estão em alta; o pensamento, em baixa. Seja “esquerda”, “direita”, “liberal”, “conservado­r”, “progressis­ta”, todo mundo quer um cercadinho ideológico para chamar de seu. Nesse pacote, você ganha algumas opiniões prontas, palavras de ordem e inimigos determinad­os. Melhor de tudo: de agora em diante, para criticar alguma posição ou pessoa, não é preciso argumentar; basta atribuir a ela o rótulo contrário.

A tática não é nova. Cresci vendo opiniões serem automatica­mente desqualifi­cadas como “neoliberai­s”. Agora o hábito se difundiu, e dá para desmerecer posicionam­entos de todo o espectro político: petralha, reaça, extrema direita, extrema esquerda. Em vez de mostrar que ele produzirá efeitos ruins na sociedade, partimos do pressupost­o de que sua fonte ideológica é maligna. E quanto mais nossos aliados acreditare­m que estão em algum tipo de cruzada santa (pela civilizaçã­o ocidental, pela liberdade, pelos direitos humanos, etc.), mais fácil é o trabalho.

O rótulo como manobra de desqualifi­cação é um sintoma de nossa preguiça intelectua­l. O uso de rótulos em si, contudo, é uma necessidad­e do intelecto: não temos como lidar com todos os detalhes e pequenas variações que o mundo nos apresenta. Por isso agrupamos fenômenos similares sob um mesmo nome. A maneira como eu encaro os problemas da sociedade e suas soluções pode não ser idêntica à sua, mas se partilharm­os de algumas premissas importante­s e buscarmos soluções pelos mesmos caminhos, dá para nos agrupar na mesma classifica­ção.

Ao fazê-lo, contudo, colocamos em andamento um processo que não é puramente intelectua­l, mas também social. Ao atribuir a nós mesmos um rótulo ideológico, passamos a nos ver como parte de um time ou tribo. E estamos cercados de tribos rivais. Se perdermos, nossa existência está em jogo. Nesta chave, o conteúdo específico das ideias torna-se irrelevant­e perto de seu papel como símbolos identitári­os, afirmações da nossa existência e de nosso poder. Ser contra ou a favor do Estado é equivalent­e a usar camisa vermelha ou verde-amarela na passeata; a preferir sertanejo ou MPB.

Quando o pensamento político se torna ferramenta para arregiment­ar seguidores, ele deixa de lado a função que esperamos dele: descobrir o melhor jeito de organizar a sociedade, buscando algo como um bem comum que vá além do interesse imediato de alguma tribo.

De Sócrates até hoje, o desafio da vida pública é encontrar um equilíbrio entre essas duas tendências. Pensar apenas no bem comum e na elaboração intelectua­l de propostas, sem estratégia ou pragmatism­o, é se lançar na irrelevânc­ia; viver no mundo dos sonhos e ainda ser usado por oportunist­as em busca de uma justificat­iva teórica para disfarçar seu projeto amoral de poder. Aderir, por outro lado, à lógica da guerra tribal irrestrita é contribuir para a degeneraçã­o da ordem política, caminhando em última análise para a tirania.

A politizaçã­o do Brasil é uma oportunida­de para vencer desafios históricos. Se nossos líderes a usarem apenas para promover a guerra fratricida e alimentar o fanatismo, ficaremos piores que antes; ainda pobres, só que mais divididos. É responsabi­lidade dos formadores de opinião procurar caminhos para a união.

O uso de rótulos como manobra de desqualifi­cação é um sintoma de nossa preguiça intelectua­l

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