Folha de S.Paulo

Os EUA, depois do fim da Guerra Fria e após os ataques

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Folha - O sr. testemunho­u momentos importante­s da história brasileira, relatados no seu livro. Pode contar algum?

Rubens Ricupero - Tem o encontro do [senador americano] Robert Kennedy (192568) com o ex-presidente João Goulart (1918-76), em 1962.

Era 17 de dezembro e eu era terceiro-secretário, um cargo baixo no Itamaraty. Brasília estava vazia e eu era o único diplomata respondend­o pelo Itamaraty. Pediram para receber o Robert Kennedy. Podia parecer ofensa, o terceiro-secretário, e expliquei ao Lincoln Gordon [embaixador dos EUA] que eu era o único ali.

Apertei a mão do Kennedy. No dia seguinte, ele foi recebido pelo Goulart, no Alvorada. Na sala estavam apenas Goulart, um intérprete, Kennedy e Gordon. Goulart não quis testemunha­s porque provavelme­nte antecipava que ia ser uma conversa muito forte. Em 2014, foi revelado um memorando escrito por Gordon.

Kennedy teria dito a Goulart: “Não temos problemas com independên­cia na política brasileira, mas objetamos a que essa independên­cia se torne sistematic­amente antiameric­ana, opondo-se a políticas e interesses americanos de modo regular”.

Ainda falta escrever o livro sobre o papel dos americanos no golpe. Não acho que eles deram o golpe, mas não tenho dúvida de que induziram. É como num homicídio. Os americanos não executaram, mas foram os mandantes. Hoje qual é o tom do relacionam­ento entre Brasil e EUA? [terrorista­s] de 11 de setembro de 2001, passaram a ter uma agenda em que não há espaço para América Latina. A pauta é dominada hoje por grandes temas de superpotên­cia.

Uma vez eliminada a ameaça comunista, para os americanos, o que se passa aqui não incomoda muito. Até mesmo a Venezuela —eles preferiria­m que fosse um país a favor dos EUA, mas podem conviver com isso. Hoje, na grande estratégia americana, não há espaço para o Brasil. O Trump até hoje não fez um tuíte especifica­mente sobre o Brasil. Essa é a maior prova da insignific­ância do Brasil para o governo americano. Nossa política para os EUA está mais para a independên­cia dos anos Jânio-João Goulart ou alinhament­o automático?

Temos uma política independen­te. No discurso do Temer na ONU, há defesa do Acordo de Paris [sobre mudança climática] e do multilater­alismo, dois temas a que Trump se opõe. O Brasil não é potência nuclear, nem militar convencion­al, nem econômico-comercial. A única área em que o país é potência é no ambiente, porque tem a maior floresta tropical do mundo, se o Temer e a bancada ruralista não destruírem. Também na área de negociação agrícola comercial não se pode chegar a um acordo sem o Brasil. Um dos momentos em que a política externa brasileira esteve em evidência foi em 2010, quando o Brasil , com a Turquia, propôs um acordo para a questão nuclear do Irã...

Nunca fui um crítico do esforço que o [ex-presidente] Lula e o Celso [Amorim, exchancele­r] fizeram. Há derrotas que honram mais que certas vitórias, essa é uma delas. Foi uma iniciativa inédita. Quando se falava em multipolar­ismo, acreditava-se que as grandes potências nucleares e militares tinham aceitado que havia espaço para países intermediá­rios como o Brasil, a Turquia, o México, a Índia. Que esses países poderiam tentar solucionar um caso como o do Irã. Mas na hora em que houve a prova de fogo, viu-se que as grandes potências não delegavam.

Não sou sectário. Discordo da política externa dessa época para América Latina, a política paralela do PT, feita por inspiração da ideologia, não pelos interesses do Brasil. Qual a imagem do Brasil hoje?

Correspond­e à realidade: trata-se de um país com uma corrupção terrível, um presidente com uma segunda denúncia, a crise mais grave da história. Ninguém quer sair na foto com o Brasil. [Binyamin] Netanyahu veio para região e não se encontrou com o Temer, o vice-presidente americano, Mike Pence, também.

Por que todo mundo queria estar com o Lula? O Lula era um vitorioso. Além do sucesso econômico e político, ele tinha o êxito moral, o combate à miséria e à injustiça. Quem não queria ficar ao lado do [expresiden­te da África do Sul] Nelson Mandela? Hoje, deve ter muito pouca gente querendo sair na foto com o Temer.

Ninguém pode imaginar que o Itamaraty alavancará o Brasil se o país não acaba com a corrupção, não volta a crescer, não combate a miséria. A certa altura do livro, o senhor diz que a “Dilma escondia debaixo da autossufic­iência e da aspereza no trato com os diplomatas inseguranç­a nascida da falta de sensibilid­ade para relacionam­ento interpesso­al”.

Ela não tinha autoconfia­nça. Fiquei dez anos na ONU. Em 2012, na reunião do G8 em Evian, o [então secretário-geral da ONU] Kofi Annan me levou como seu principal auxiliar. Nessa reunião, o [então presidente francês Jacques] Chirac tinha convidado o Lula, o líder chinês e o indiano, mas para uma reunião à parte.

Eu estava lá quando o Lula chegou, e pensei comigo: acho que ele vai ficar intimidado. Estavam presentes o Chirac, o [ex-presidente americano] George W. Bush, o primeiro-ministro britânico Tony Blair, o [ex-chanceler alemão] Gerhard Schröder, [o ex-primeiro ministro italiano Silvio] Berlusconi e [o presidente russo Vladimir] Putin.

Houve uma sessão em que estavam falando sobre a fome, e o Bush, que é evangélico, fez uma intervençã­o dizendo que tinha muito a ver com a Bíblia. O Chirac, com aquela arrogância francesa, disse: ‘Não tem nada a ver com religião ou a Bíblia’. Aí o Lula assumiu a defesa do Bush, disse ‘não senhor, tem tudo a ver, porque a Bíblia isso e aquilo’.

Ele estava com aquela cara de bravo, falando alto, e todo mundo afinou. Aí percebi: para o Lula, aquele pessoal eram os patrões da Fiesp, o líder metalúrgic­o não pode se intimidar com os patrões da Fiesp. A Dilma não é assim.

“mundo queria estar com o Lula? O Lula era um vitorioso. Quem não queria ficar ao lado do Mandela? Hoje, deve ter muito pouca gente querendo sair na foto com o Temer “grande estratégia americana, não há espaço para o Brasil. O Trump até hoje não fez um tuíte sobre o Brasil. Essa é a maior prova da insignific­ância para o governo americano

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