Folha de S.Paulo

Livro é testemunho vívido do ‘consiglier­e’ diplomátic­o brasileiro

- MATIAS SPEKTOR

FOLHA

“Quem é o Rubens Ricupero da nova geração?”, perguntou-me outro dia um brasiliani­sta. Resposta satisfatór­ia não há, pois Ricupero talhou para si um lugar na vida pública brasileira que continua sendo único.

Ele é o consiglier­e diplomátic­o por excelência. Quando Bobby Kennedy pousou em Brasília para dar um ultimato a João Goulart, antes do golpe, Ricupero estava lá. Quando Tancredo Neves montou um périplo internacio­nal para legitimar a presidênci­a indireta, Ricupero estava lá. Quando José Sarney avisou aos argentinos (antes do mundo) que o Brasil enriquecia urânio, foi ele o portador do recado presidenci­al. Quando Fernando Collor precisou de um elo com a Casa Branca, lá foi o embaixador.

Foi Ricupero quem assumiu a Fazenda para FHC poder sair candidato no governo Itamar. Foi com ele que a candidatur­a de Marina Silva definiu parte de seu tom. E foi nele que o comando do Itamaraty encontrou sua principal referência no governo Temer. A classe política pede seu conselho uma e outra vez.

Só que este consiglier­e tem um estilo todo pessoal. Impaciente com o conforto dos gabinetes, Ricupero gosta de embate. Escreveu uma dúzia de livros, assinou por décadas uma coluna nesta Folha, e abraçou a causa do ambientali­smo com a energia do mais aguerrido ativista.

Muitas vezes exercitou o ofício de historiado­r. Leitor voraz e dono de uma memória implausíve­l, tem um domínio do passado que assombra qualquer interlocut­or.

Seus inimigos disputaram­lhe as ideias, mas nunca lhe questionar­am a integridad­e e honra pessoal. Discutir com ele foi, e continua sendo, um grande prazer da boa batalha intelectua­l. Não há no Brasil de hoje personagem igual.

Este livro é seu mais completo testamento. Na superfície, é uma história ambiciosa da diplomacia brasileira — com começo em 1640 e fim em 2016— contada a partir das tradições do Itamaraty, com todas as vantagens e problemas que isso acarreta.

Trata-se, no entanto, de algo bem mais complexo e fascinante porque, na prática, há dois livros em um.

O primeiro sintetiza os dramas nacionais e internacio­nais de cada governo brasileiro. Dos imbróglios da Regência aos dilemas de Ernesto Geisel, há detalhes curiosos, passagens deliciosas e humor mordaz. Como em trabalhos anteriores, a idolatria por Rio Branco e San Tiago Dantas dá o tom.

O segundo livro embutido nesta obra é mais ambicioso e agressivo. Ricupero volta à história das batalhas diplomátic­as do Brasil no Prata para desfechar seu golpe contra a política externa do PT, em pleno século 21.

Em sua narrativa, o grande acervo diplomátic­o do Brasil está na prudência, na rejeição aos voluntaris­mos, na temperança e na desconfian­ça profunda da busca de prestígio de chefes de governo e chancelere­s. Há nisso uma certa idealizaçã­o do passado, haja vista os avanços da historiogr­afia sobre o período.

Para Ricupero, os limites estruturai­s ao poder do Brasil dificultam iniciativa­s internacio­nais ambiciosas. Sem excedente de poder, o custo de oportunida­de de uma diplomacia ativista é enorme.

Agora que o país assiste atônito à decadência da Nova República, a experiênci­a de homens como Ricupero é mais valiosa do que nunca. Este livro oferece uma visão própria da forma como o passado ilumina as escolhas difíceis do presente. AUTOR Rubens Ricupero EDITORA Versal Editores QUANTO R$ 89,90 (784 págs.) CLASSIFICA­ÇÃO ótimo

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