Folha de S.Paulo

Esquizofre­nia eleitoral

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SÃO PAULO - Numa das mais malucas e controvers­as hipóteses da psicologia, Julian Jaynes propôs que, até uns 3.000 anos atrás, a mente humana funcionava de modo repartido (bicameral), no qual as memórias e experiênci­as de um hemisfério cerebral eram transmitid­as ao outro através de alucinaçõe­s auditivas.

Nesse mundo bicameral, a consciênci­a ainda não existia e a própria volição assumia a forma de comandos divinos. O que hoje classifica­ríamos como sintomas de esquizofre­nia era o modo ordinário de pensar.

Jaynes me veio à mente ao ler os resultados da última pesquisa Datafolha. A maioria dos brasileiro­s quer Lula preso (54%), mas é ele que aparece como líder em todos os cenários eleitorais. A maioria dos brasileiro­s diz buscar um candidato que nunca tenha se envolvido em casos de corrupção (87%) e que tenha experiênci­a administra­tiva (79%), mas os dois favoritos são um condenado em primeira instância por corrupção e um ex-militar que nunca teve cargo no Executivo.

O interessan­te na hipótese de Jaynes não é tanto o retrato da mente bicameral que ela pinta, mas a forma como teríamos rompido com esse estado e desenvolvi­do uma metaconsci­ência. Para o autor, uma sucessão de colapsos sociais tornou necessária a autodomest­icação comportame­ntal, que tem como base a capacidade de elaborar linguistic­amente pensamento­s sobre pensamento­s, crenças acerca de crenças, desejos relativos a desejos etc. É assim que as vozes divinas teriam se calado para dar lugar ao indivíduo moderno.

Minha impressão é que algo parecido ocorre em eleições. À medida que o pleito se aproxima, eleitores vão trocando suas volições mais nostálgica­s por raciocínio­s um pouco mais organizado­s, que tentam agregar as várias dimensões que influem no voto. Se não é o suficiente para transforma­r a eleição num processo lógico, costuma bastar para atenuar as contradiçõ­es mais flagrantes. helio@uol.com.br

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