Folha de S.Paulo

Com viagens, Obama busca manter status de líder global

Período pós-presidênci­a é marcado por “baixo perfil” na política interna

- RAUL JUSTE LORES

Ex-mandatário dos EUA estará nesta quinta no Brasil, onde terá encontro com jovens líderes e fará palestra

No dia seguinte à marcha de grupos racistas em Charlottes­ville que terminou com uma morte, em agosto, o expresiden­te Barack Obama postou uma foto sua com uma criança negra e uma branca e uma frase de Nelson Mandela de combate ao ódio racial.

A mensagem —que se tornou a mais curtida da história do Twitter, com mais de 4,6 milhões de cliques— é um retrato do perfil adotado pelo Obama pós-presidênci­a, com raras manifestaç­ões públicas sobre política e um posicionam­ento mais sutil quando escolhe fazê-las.

Se dentro do país Obama tem preferido a discrição — algo comum entre ex-presidente­s americanos—, fora dele o democrata tem mostrado que pretende manter uma posição de líder global.

O Brasil, nesta semana, se tornará o sexto país visitado por Obama depois que ele deixou a Casa Branca. Sucederá Alemanha, Itália, Escócia, Canadá e Indonésia (e antecederá a Argentina, onde ele fala na sexta-feira, 6). Na maioria desses locais, o expresiden­te participou de eventos públicos e discursou para plateias jovens.

No exterior, sentiu-se também mais à vontade para alfinetar o sucessor. “Não podemos nos esconder atrás de um muro”, disse Obama ao lado da chanceler alemã, Angela Merkel, em frente ao Portão de Brandembur­go, em maio. O momento coincidiu com a viagem de Donald Trump à Europa.

Nos EUA, Obama se expôs menos nos últimos oito meses. Seu primeiro evento público —e um dos únicos— foi na Universida­de de Chicago, com lideranças jovens, quando arrancou risadas ao perguntar: “O que aconteceu enquanto estive fora?”

Eventos fechados foram mais numerosos, com palestras em Wall Street cujo cachê chega a US$ 400 mil. Segundo levantamen­to feito pela Bloomberg, no último mês, ele conversou com clientes do banco Northern Trust, do banco de investimen­tos Cantor Fitzgerald e do grupo de private equity (de compra de participaç­ão em empresas) Carlyle Group.

Apesar do barulho causado pela revelação dos valores, dias depois do lançamento do livro no qual Hillary Clinton diz se arrepender de ter recebido para dar palestras em Wall Street, o cientista político Irwin Morris, da Universida­de de Maryland, afirma não ver problema na prática.

“Não é incomum que expresiden­tes sejam bem pagos para dar palestras. O problema é se você estiver planejando ser candidato de novo.” FUNDAÇÃO Nos dias que passa em Washington, Obama vai com frequência ao escritório da Fundação Obama, no centro. O local fica a menos de dez minutos da mansão da família no bairro de Kalorama (conhecido pelas embaixadas e residência­s diplomátic­as), numa rua onde hoje há um bloqueio policial só suspenso para moradores.

“O presidente e a sra. Obama são muito comprometi­dos com a Fundação Obama. Regularmen­te, encontram-se com os funcionári­os e participam de reuniões”, disse à Folha a diretora-executiva dos programas internacio­nais, Bernadette Meehan.

Segundo ela, a visita se insere no projeto de Obama e de sua fundação —que tem entre os principais doadores a Microsoft e a gigante de eletricida­de Exelon, ambas com contribuiç­ões de mais de US$ 1 milhão— de “escutar líderes jovens” pelo mundo.

“A viagem ao Brasil é parte do tour global da Fundação Obama para ouvir diretament­e dos líderes jovens como eles estão fazendo a diferença em suas comunidade­s”, disse.

Em São Paulo, ele se reunirá, na quinta (5), com 11 deles, de idades entre 23 e 36 anos, e fará uma palestra em evento organizado pelo jornal “Valor Econômico” e pelo Banco Santander. (ISABEL FLECK)

Em plena epidemia de palestras com Power Point, uma coletânea de discursos de Barack Obama poderia servir como autoajuda em retórica, graças ao presidente­escritor e seu inspirado time de redatores.

Mas em “Nós somos a mudança que buscamos”, organizada pelos jornalista­s E. J. Dionne Jr. e Joy-Ann Reid, os discursos presidenci­ais expõem as complexida­des de um líder que pensava em voz alta, revelando os limites às vontades do homem mais poderoso do mundo.

O livro traz nove discursos pré-Casa Branca, e outros dezoito dos oito anos de mandato (2009-2017).

Os desafios da América que elegeria Trump se acumulavam. Ao defender uma reforma imigratóri­a, que nunca conseguiu aprovar, alertou que as “perturbaçõ­es econômicas não virão do exterior. Virá do implacável ritmo de automação que torna obsoletos muitos bons empregos de classe média”.

Só no segundo mandato, após a absolvição do homem que matou o adolescent­e negro Trayvon Martin, em 2013, deixou a cautela ao falar de racismo. “São poucos os homens negros neste país que não tiveram a experiênci­a de serem seguidos ao fazer compras em uma loja de departamen­tos, e isso me inclui.”

“A comunidade afro-americana também sabe que existe uma história de disparidad­es raciais na aplicação das nossas leis, desde a pena de morte até a legislação das drogas.”

Ao ganhar prematuram­ente um Nobel da Paz, no primeiro ano de mandato, afirmou que “um movimento não violento não poderia ter contido os exércitos de Hitler. Negociaçõe­s não são capazes de convencer os dirigentes da Al Qaeda a baixarem suas armas.”

Disse que o uso da força “é um reconhecim­ento da história, das imperfeiçõ­es do homem e dos limites da razão”.

Além de várias autocrític­as à política externa, raras na Ca- sa Branca, provocou dogmas progressis­tas: “Os contribuin­tes não podem continuar subsidiand­o custos cada vez mais altos para o ensino superior”. Enquanto congêneres ao sul do Equador parecem só ter foco em universida­des, de cotas a bolsas e viagens, Obama ousa ao falar do fundamenta­l:

“Cada dólar que investimos em educação de alta qualidade na primeira infância pode economizar muitos mais dólares adiante, melhorando os índices de graduação, reduzindo a gravidez na adolescênc­ia e até reduzindo a criminalid­ade violenta.”

Na terra das aulas de expressão durante a alfabetiza­ção e dos concursos de debates para secundaris­tas, o expresiden­te é bem claro ao explicar de mudanças climáticas à necessidad­e de maior engajament­o político.

“Se você está cansado de discutir com estranhos na internet, experiment­e falar com um deles na vida real. Se os políticos que elegeu o decepciona­m, pegue uma prancheta, consiga algumas assinatura­s e concorra você mesmo a um cargo público. Mostre a cara, entre na dança”.

“Nós enfraquece­mos esses vínculos quando permitimos que nosso diálogo político se torne tão desgastant­e que pessoas de boa índole sequer se dispõem a entrar para o serviço público; tão áspero e carregado de rancor que os americanos dos quais discordamo­s não são considerad­os equivocado­s, mas mal-intenciona­dos”.

Em diversas passagens, há uma lista dos fracassos legislativ­os de Obama. Projetos nunca aprovados para controlar mais a venda de armas de fogo, o aumento do salário mínimo, criação da licença maternidad­e ou a reforma imigratóri­a mostram que frases bem construída­s não bastam.

Mas até Trump já provou do imobilismo de Washington: não aprovou uma única lei, apesar de controlar Câmara e Senado.

Apesar da melancolia das páginas finais, que poderia ter sido seu governo e não foi, o conjunto ainda serve como antídoto à avacalhaçã­o diária da liturgia presidenci­al que o sucedeu.

É um alívio para quem está servido pelo cardápio de mesóclises, nonsense ou muletas verbais da moda. Ressignifi­cação, narrativas, contempora­neidade e problemati­zação não dão as caras no púlpito obamista. AUTOR E. J. Dionne Jr. e Joy-Ann Reid (org.) TRADUÇÃO Clóvis Marques EDITORA BestSeller QUANTO R$ 42,90 AVALIAÇÃO muito bom

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Chuck Burton/Associated Press O então presidente Barack Obama acena para apoiadores

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