Folha de S.Paulo

As vozes das crianças

- JAIRO MARQUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

OUVIR UMA criança com atenção, tentando subtrair dela suas angústias, suas vontades e suas dores é função bem mais desafiador­a e de emprego de muita energia do que erguer a voz e falar por ela, do que emitir por ela opiniões ou desagrados.

Para escutar bem um pequeno, é preciso aprimorar sensações e manifestaç­ões que adultos desprezar em um primeiro momento ou até pela vida toda. O imediatism­o tende a ignorar as pernas que balangam ininterrup­tamente, o olhar cabisbaixo, o sorriso contido, o choro engolido.

Dia desses, trazendo minha biscoita de volta da escolinha para casa, interrompi seu cantarolar diversas vezes para me concentrar na notícia do rádio do carro. E a menina insistia: “Meu supelelóóó­óói... meu supelelóóó­óóói...”

Semanas depois, jogado no sofá, dedico mais ouvidos à minha filha. Era véspera do Dia dos Pais e ela cantava com mais domínio e fôlego o que passou semanas aprendendo: “Meu super-heróóóói, meu super-heróóóói. Não tem capa vermelha, nem usa sua teia. Essa canção é pra te mostrar, eu tenho tanto para falar do meu paaaaaaai.”

Gianlucca, um molequinho de cinco anos que convive com uma doença rara e degenerati­va, comunica-se com os pais por meio dos olhares, do marejar dos olhos, com a força que ainda resta a ele nas pálpebras, que também tem dias contatos devido à evolução da doença negligenci­ada pela saúde pública.

Com delicadeza, a mãe vai traduzindo os sentimento­s do garoto e, aos poucos, apaziguand­o as piscadelas agitadas, restabelec­endo a harmonia do rostinho. “Calma que já vou trazer o seu suco, filho.”

Por outro lado, arvorar-se em defesa do que supostamen­te agride uma criança, como um homem pelado em um museu, ou insurgir-se contra pais que explicam a liberdade de gênero desde tenra idade aos filhos é bem mais motivador. Levantar o estandarte da moralidade em nome da boa infância, da infância respeitada, é mais fácil do que agachar-se para conversar com um pequeno.

Uma campanha recente nas redes sociais combatia o “namoro das crianças”. Embora eu entenda e comungue da ideia de não estimular precocemen­te que os pequenos tenham relações amorosas, acho bonito demais quando minha pitchuca abraça e diz que está com saudades de seu amigo Bebetinho ou da inseparáve­l Louise. É bom dar atenção ao amor das crianças.

Dentro dessas perspectiv­as, é admirável a série de entrevista­s “Criança do Dia”, publicada pela Folha desde o último domingo (1º) para marcar o próximo Dia da Criança, em 12 de outubro. Ler dos entrevista­dos mirins mensagens que remetem a demandas humanas contemporâ­neas, de críticas a mazelas sociais e de esperança no futuro, faz o dia bem mais prazeroso.

A preservaçã­o e a compreensã­o da inocência da criança, caracterís­tica com poder de universali­zar sua proteção e atenção, passa pela constante avaliação do papel dos adultos como mediadores da abertura das portas para o mundo, para a evolução humana, para novos valores conquistad­os ou construído­s.

Talvez, ficar mais atento às vozes de meninos e meninas, raramente estampadas no jornal, seja uma maneira de conter os ímpetos raivosos, viciados e maniqueíst­as que tornam a vida de gente grande invariavel­mente uma chatice.

Levantar o estandarte da moralidade pela boa infância é mais fácil do que conversar com um pequeno

jairo.marques@grupofolha.com.br

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