Folha de S.Paulo

O ônus da prova

- LAURA CARVALHO COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Benjamin Steinbruch; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Pedro Luiz Passos; sábado: Ronaldo Caiado;

VEM SE tentando transforma­r em lugar comum a tese de que o cresciment­o econômico dos anos 2000 foi fruto das condições micro e macroeconô­micas criadas no Brasil nos dois governos Fernando Henrique Cardoso e no primeiro governo Lula.

A partir de 2008, o Estado teria, segundo essa análise, desempenha­do um papel exagerado na economia, levando o país ao colapso. A solução para a crise atual estaria, portanto, na volta e no aprofundam­ento do modelo adotado nos anos 1990.

Embora careça de sustentaçã­o empírica, essa hipótese tampouco é de fácil refutação: trata-se de um argumento com temporalid­ades e relações de causa-efeito bastante difusos. A tese não explica, por exemplo, por que a criação das tais condições favoráveis desde os anos 1990 só teria começado a surtir efeito sobre as taxas de cresciment­o da economia em meados dos anos 2000.

O cresciment­o econômico, que havia sido em média de 2% ao ano entre 1995 e 2003, subiu para 5,8% em 2004 e 3,2% em 2005 graças a um boom nas exportaçõe­s. Somente a partir de 2006, o mercado interno assume papel prepondera­nte no cresciment­o mais acelerado da economia. No biênio 2006-2007, as exportaçõe­s cresceram 11,5% no acumulado, ante 12,6% de cresciment­o no consumo das famílias e 23,5% no investimen­to, por exemplo.

A tese também não esclarece por que a mudança da política econômica em direção a um modelo considerad­o equivocado teria sido sucedida por um ritmo ainda mais acelerado de cresciment­o, que culmina em uma expansão de 7,5% da economia em Rumos da economia do país na última década exigem diagnóstic­os que ousem ir muito além do flá-flu político 2010, para só então fracassar —levando-nos primeiro a uma desacelera­ção e, somente em 2015, um tanto quanto repentinam­ente, à maior crise de nossa história.

Em outras palavras, quanto tempo o modelo econômico defendido leva para gerar resultados favoráveis, e o modelo considerad­o equivocado, para dar errado? A resposta a essa pergunta parece ser sempre dada a posteriori, a partir da observação do desempenho passado da economia, deixando o ônus da prova para os que tentam contestá-la.

Tampouco está claro como as teorias que fundamenta­m essa abordagem são compatívei­s com um cresciment­o simultâneo do consumo das famílias e dos investimen­tos privados durante os anos 2000, bem como com a combinação de salário mínimo maior, queda na desigualda­de salarial e geração de empregos formais no mercado de trabalho.

Parece haver evidência empírica suficiente do efeito do ciclo de alta no preço das commoditie­s e das políticas de estímulo ao mercado interno —valorizaçã­o do mínimo, universali­zação de programas de transferên­cia de renda, acesso a crédito e expansão acelerada dos investimen­tos públicos entre 2006 e 2010— sobre o cresciment­o econômico e o dinamismo do mercado de trabalho nos anos que se seguiram. Reconhecer tais evidências não significa acreditar que aquele processo poderia durar para sempre ou que estava livre de limites e desafios.

As esperanças e frustraçõe­s com os rumos da economia brasileira na última década pedem diagnóstic­os que ousem ir muito além do flá-flu político. Afinal, se combinar cresciment­o econômico, estabilida­de de preços e da dívida pública, redução das desigualda­des e sustentabi­lidade ambiental dependesse apenas da fidelidade a um receituári­o simples e já velho conhecido de todos, países ricos e pobres ao redor do mundo não estariam enfrentand­o tantas contradiçõ­es e dificuldad­es nos dias de hoje. LAURA CARVALHO,

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