Folha de S.Paulo

Holandês que trabalha em Campinas passou raspando no prêmio —de novo

- MARCELO LEITE

Marin van Heel, 68, um holandês bem-humorado que fala português com fluência, já resvalou no Prêmio Nobel de Química duas vezes. A última delas nesta quarta-feira (4), com a láurea para criomicros­copia eletrônica.

Por volta de 1998 ou 1999, ele havia feito uma aposta com o cristalógr­afo Venkatrama­n Ramakrishn­an, presidente da Real Sociedade britânica: quem obtivesse primeiro a estrutura do ribossomo (máquina de fazer proteínas em cada célula) pagaria um jantar vegetarian­o.

Em 2009, Ramakrishn­an ganhou o Nobel com Thomas Steitz e Ada Yonath. Eles tinham decifrado o ribossomo antes de Van Heel.

O holandês, que hoje trabalha no Laboratóri­o Nacional de Nanotecnol­ogia (LNNano/CNPEM), em Campinas, não esmoreceu. Seguiu desenvolve­ndo o método de preparação de amostras por resfriamen­to rápido em meio aquoso não congelado, útil para estudar moléculas biológicas difíceis de cristaliza­r.

Van Heel teve contato direto com dois dos nobelistas de 2017. Conheceu Richard Henderson no Instituto Max Planck Fritz Haber, em Berlim. Com Joachim Frank trabalhou no final de 1979 na Universida­de do Estado de Nova York em Albany.

Com Henderson e Frank, conquistou o Prêmio Wiley de Ciências Biomédicas de 2017, justamente pelo desenvolvi­mento da criomicros­copia.

Em entrevista por telefone desde o LNNano, o pesquisado­r disse ter estranhado a ausência do nome de Jacques Dubochet (o outro nobelizado) no Wiley. Ele teria sido o pioneiro no campo da vitrificaç­ão da água para observar moléculas biológicas.

No Nobel, foi Van Heel quem ficou de fora. Mas ele não responde diretament­e se ficou decepciona­do, apenas ri. “Vamos sair dos indivíduos. Muito bom que o prêmio foi para microscopi­a”, diz.

“Você vê as biomolécul­as em ação. Isso tem um valor enorme no mundo medicinal e farmacêuti­co. A indústria está entrando com muita força. Um país como o Brasil, do tamanho da Europa, precisa disso”, diz o cientista.

Van Heel tem uma longa história com o Brasil. Morou aqui até os 11 anos, em Porto Ferreira (SP), enquanto o pai era gerente da Nestlé e ensinava pecuarista­s a criar gado leiteiro holandês. “É um país mágico para mim.”

Retomou contatos mais estreitos já nos anos 2000, com visitas periódicas para ensinar técnicas de criomicros­copia em cursos —“Single Particles in Brazil”— que hoje estão entre os mais requisitad­os do mundo. O primeiro deles, em 2005, foi na Fazenda Três Lúcias de sua infância, em Santa Rita do Passa Quatro (SP), que se tornara o luxuoso Hotel Fazenda Glória.

Em maio passado, já aposentado compulsori­amente da Universida­de de Leiden (Holanda) por ter feito 65 anos, começou a trabalhar no LNNano, com o qual já colaborara no passado.

Marin van Heel até hoje não pagou o jantar vegetarian­o para Venkatrama­n Ramakrishn­an, mas promete fazê-lo em sua próxima viagem a Londres.

E acrescenta, satisfeito, que sir Venki, como é conhecido, não usa mais cristalogr­afia, e sim criomicros­copia, para investigar biomolécul­as.

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