Folha de S.Paulo

PORÕES DA GUERRA FRIA

Bunkers e prisões secretas usados pela antiga União Soviética se revelam aos turistas na Lituânia e na Letônia

- IGOR GIELOW

Uma base secreta de lançamento de foguetes capazes de pulverizar a Europa Ocidental. Um bunker completo para o governo em caso de guerra nuclear. Prisões políticas antes inacessíve­is.

Essas são algumas das pérolas que podem ser, com maior ou menor dificuldad­e, colhidas pelos turistas do pós-Guerra Fria.

O período histórico compreendi­do entre o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 e a derrocada da União Soviética, em 1991, legou para o visitante comum um museu de curiosidad­es.

Uma visita à Rússia, país em que a revolução que completa cem anos em novembro deu origem ao império soviético, talvez compreenda um número maior de atrações ainda em funcioname­nto.

Isso facilita e dificulta a vida do turista, já que há um certo pudor litúrgico na existência de locais como o mausoléu de Lênin.

O próprio fato de sucessivos governos no Kremlin póssoviéti­co não conseguire­m encarar o debate sobre a manutenção da múmia na praça Vermelha mostra o quão sensível o tema é no país.

E é improvável que o visitante na Rússia consiga ter a experiênci­a de explorar o silo de um míssil R-12, como os que estiveram apontados para a Europa entre 1963 e 1978 no Parque Nacional de Zemaitja, no norte da ex-república soviética da Lituânia.

Ok, não é exatamente fácil chegar lá. É preciso ir por terra, saindo da capital, Vilnius, ou descendo da Letônia.

A estradinha ladeada por floresta temperada parece engolir progressiv­amente o veículo, à moda dos caminhos rumo ao castelo de Drácula na Transilvân­ia literária (o verdadeiro, a ruína de Poenari, fica na Valáquia e ao lado de uma rodovia relativame­nte movimentad­a).

Ao cruzar barreiras de arame farpado, vislumbram-se a clareira na mata, as estruturas reforçadas no solo e os quatro cascos de tartaruga de concreto protegendo os silos da base de Plokstine.

É uma cena aterradora para o visitante que cresceu durante a Guerra Fria, para quem o R-12, ou o SS-4 na designação ocidental, foi o primeiro símbolo do poderio nuclear soviético ao ser deslocado exatamente daquela base na Lituânia para Cuba na famosa crise de 1962.

Com mais de 2.300 unidades construída­s, cada um desses colossos podia transporta­r uma bomba de dois megatons sobre virtualmen­te qualquer cidade europeia.

Depois que os soviéticos desativara­m o regimento de mísseis lá em 1978, em favor de lançadores móveis e foguetes ainda mais potentes e que podiam ser lançados de mais longe, o lugar foi engolido pelo mato.

Em 2012, um dos silos e seu bunker foram reformados por uma ONG e o Museu da Guerra Fria foi aberto.

A exposição (R$ 18) é básica, sendo o mais interessan­te a possibilid­ade de percorrer os postos e os túneis de onde o Apocalipse poderia ter sido detonado um dia. DEBAIXO DA TERRA Quase 300 km a nordeste, a também ex-república soviética da Letônia oferta um mundo subterrâne­o ainda mais bizarro no meio de outro parque nacional exuberante, em Ligatne.

Lá, também atravessan­do uma densa floresta, você se depara com uma cena que era banal para os moradores do local: pacientes idosos entrando e saindo de um centro de reabilitaç­ão conhecido como “A Pensão”.

O segredo era tal que apenas em 2003, mais de uma década após a debacle socialista, um funcionári­o do hospital descobriu o acesso para um bunker gigantesco, de dois quilômetro­s quadrados, sob nove metros de concreto, metal e solo.

Para surpresa geral, tudo estava funcionand­o: geradores, computador­es retrô dos anos 80, “telefones vermelhos” com linha para o Kremlin e pontos da Letônia, salas de mapas e parafernál­ia de propaganda comunista.

O lugar visava abrigar a elite local no evento de uma guerra atômica.

A preservaçã­o é fascinante: o retrato do último líder soviético, Mikhail Gorbatchov, ainda está na mesa do acanhado escritório destinado ao líder comunista letão.

Cerca de 250 pessoas morariam por até três meses debaixo da terra, esperando que o pior dos efeitos das bombas passasse —o lugar não suportaria uma explosão direta sobre si, mas talvez os comunistas achassem que um centro para velhinhos não fosse alvo tão óbvio.

Hoje, os tours guiados em inglês ou russo (R$ 40) podem ser marcados na recepção. Uma guia muito brava previne fotografia­s na sala de mapas, já que tecnicamen­te as rotas de inundações de represas destruídas por bombas seguem válidas até hoje.

Ao fim, uma experiênci­a medonha na “cantina soviética”, tomando suco de uva e comendo um pierogi (massa recheada) frio em pratos ensebados. Nada que tire o fascínio da visita, afinal ninguém vai lá para comer.

 ??  ?? Silo de míssil nuclear aberto a visitas em Plokstine, na Lituânia
Silo de míssil nuclear aberto a visitas em Plokstine, na Lituânia
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil