Folha de S.Paulo

Ciudad Bolívar, em que se situa o hospital onde Daniel está internado e onde trabalha

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Daniel Contreras, 27, treme sob os lençóis e as colchas que lhe cobrem, mesmo sob o calor tropical do interior venezuelan­o. A febre causada pela malária o consome desde que chegou ao hospital universitá­rio Ruiz y Paez, em Ciudad Bolívar, distante 600 quilômetro­s de Caracas, em meados de setembro.

“Seu caso é grave, os parasitas tomaram conta de seu fígado e sem o tratamento adequado, corre o risco de morrer”, diz uma médica.

A história de Daniel, um estudante que deixou a faculdade para tentar a sorte no garimpo e acabou doente, se repete de forma incessante no interior da Venezuela, região castigada pela miséria e pela ausência do Estado.

O país vive a maior epidemia de malária de sua história — só neste ano, estima-se que mais de 500 mil pessoas serão infectadas.

O pai do jovem, David Contreiras, 56, se culpa pela doença do filho. Garimpeiro há mais de 20 anos, David convenceu Daniel a deixar o último ano da faculdade de engenharia civil para se aventurar com ele nos garimpos do quilômetro 88, uma área a 200 quilômetro­s da fronteira com o Brasil rica em ouro, criminalid­ade, prostituiç­ão e malária.

“Começamos a ter problemas para comer, o dinheiro não dava”, afirma David enquanto acaricia a testa do filho. “Então eu falei para o Daniel: ‘Vamos passar esse ano no garimpo, até as coisas melhorarem, e depois você termina a faculdade’. Mas deu tudo errado”, diz ele, que não tem dinheiro para comprar para o filho os remédios em falta no hospital.

Assim como Daniel e David, milhares de venezuelan­os estão se embrenhand­o nas florestas em busca de ouro. Outros tantos desistiram de viver na região e pegaram a Ruta 10, estrada que liga Ciudad Bolívar a Roraima, imigrando para o Brasil.

Desde 2015, quando a crise venezuelan­a se agravou, mais de 30 mil pessoas fizeram esse caminho. Muitos estão acampados em praças, parques e ruas de Boa Vista, capital de Roraima, esperan- do uma oportunida­de de emprego. Enquanto em Caracas o governo tenta manter um ar de normalidad­e em meio à crise que atinge o país, no interior há uma sensação de abandono.

Apenas a Guarda Nacional Bolivarian­a —braço das forças armadas responsáve­l pela segurança interna— está presente na região, controland­o estradas, fazendo o policiamen­to e até mesmo supervisio­nando a venda de combustíve­l nos postos.

“São eles que deveriam distribuir os remédios para a malária, mas há uma falta crônica”, afirma a médica Maria Eugênia Pinto, do hospital Ruyz y Paez. “Os tratamento­s para malária só são encontrado­s nos garimpos, nas mãos dos traficante­s de medicament­os, e custam o valor de um salário mínimo”, diz ela. ‘TALIBÃS’ Maria Eugênia, fica às margens do Orinoco, o maior rio da Venezuela.

É em sua bacia que está localizada a maior reserva de petróleo do mundo, com cerca de 75% de todo o óleo venezuelan­o. Apesar disso, tem sido cada vez mais difícil encontrar gasolina no local. O governo venezuelan­o não consegue refinar gasolina suficiente para atender ao mercado interno.

Os moradores de Puerto Ordaz, a cerca de 100 quilômetro­s de Ciudad Bolívar, vivem em uma eterna fila nos postos da cidade.

“Passamos a vida sendo ensinados que nadávamos em petróleo, que o mundo nos ataca por termos as maiores reservas do mundo, mas agora não consigo gasolina para pegar minha filha na escola”, diz o comerciant­e José Gutierrez após passar mais de 18 horas em uma fila esperando o reabasteci­mento do posto.

“E o pior é que temos que agradecer porque ainda chega, de vez em quando. Mas daqui até o Brasil, só com os talibãs”, diz.

Talibãs é como são chamados os traficante­s que dominam o interior do país, onde o sonho de combustíve­l barato acabou.

Enquanto em Caracas é possível comprar quase 30 mil litros de gasolina com US$ 1 (R$ 3,16), no interior, o dinheiro garante apenas dois litros de combustíve­l.

Em Tumeremo, cidade que marca o início do chamado arco mineiro, já quase não há gasolina, e os talibãs são o único recurso para quem quer sair dali, seja em direção a Caracas, seja rumo ao Brasil.

Nos postos de gasolina, há filas de carros estacionad­os, sem ninguém, na esperança de que um dia a gasolina volte. “Ficam ali por até uma semana, são dos talibãs. Quando chega, compram tudo”, diz um morador da cidade. Os traficante­s agem livremente, vendendo gasolina em galões de 20 litros de água, mesmo com a presença dos militares.

Foi nesta pequena cidade que a Venezuela registrou, pela primeira vez em 25 anos, um novo caso de difteria, em outubro de 2016. Desde então, a doença se espalhou pelo país até ganhar o status de epidemia, e agora o sarampo também reapareceu.

No pequeno hospital de Tumeremo, um cartaz explica que não há absolutame­nte nada no local —remédios, seringas, luvas. Do lado de fora, dezenas de venezuelan­os esperam para fazer o teste que lhes comprovará que estão com malária. Mas o local, assim como todo o interior do país, não tem as pílulas para o tratamento da doença.

Para obtê-las, os pacientes precisam ir até os traficante­s de remédios. Em Tumeremo, é fácil encontrá-los. Eles montam barracas no meio da rua, sem serem importunad­os pelos militares.

Oferecem de tudo que não se encontra nas farmácias. De pasta de dentes a anticoncep­cionais, de remédios para pressão a antibiótic­os. Todos com ágio mínimo de 2.000%.

Os remédios para malária, no entanto, não estão expostos. Marco (que não quis revelar o sobrenome), um dos fornecedor­es de medicament­os, explica que a demanda por eles está alta demais.

“O tratamento está valendo de uma a duas gramas de ouro, não se pode mais deixar à mostra”, diz, preocupado com o aumento da criminalid­ade na região. “Não há mais segurança para que nós trabalhemo­s. Está difícil.”

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Yan Boechat/Folhapress David Contreras (em pé) ao lado do filho Daniel, que sofre de malária; hospital em Ciudad Bolívar não tem remédios

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