Folha de S.Paulo

ENTREVISTA Há ocasiões em que temos de deixar a neutralida­de

EXPULSO DE ENTREVISTA POR TRUMP, JORNALISTA LATINO DOS EUA DIZ QUE É PRECISO DENUNCIAR AUTORITARI­SMO E DISCRIMINA­ÇÃO

- SYLVIA COLOMBO

ENVIADA ESPECIAL A MEDELLÍN

O mexicano-americano Jorge Ramos, 59, considera o jornalismo “uma transgress­ão, precisamos desobedece­r sempre”. O repórter, que enfrenta publicamen­te o presidente dos EUA, Donald Trump, acredita que vivemos em um momento que o jornalismo precisa tomar partido.

No último dia 30, ele recebeu o Prêmio de Reconhecim­ento à Excelência do Festival Gabo, promovido pela colombiana Fundación Nuevo Periodismo Iberoameri­cano.

Ramos já havia ganho o Prêmio María Moors Cabot, da Universida­de Columbia, e é hoje o jornalista latino mais influente nos EUA, onde é apresentad­or do principal telejornal do canal Univisión.

Após ser premiado na Colômbia, Ramos elogiou o processo de paz no país, chamou a atenção para a morte de profission­ais da imprensa no México e pediu vigilância aos jornalista­s com relação “às ditaduras de Cuba e da Venezuela”. Pouco antes, conversou com a Folha. Folha - Ter tomado uma posição tão marcada contra o governo Trump não o prejudica na prática do jornalismo? Você considera ter se transforma­do num jornalista militante?

Jorge Ramos - Creio que continuo fazendo jornalismo. A diferença é que há ocasiões em que, ao contrário do que aprendemos nas escolas da profissão, é preciso deixar de lado a neutralida­de.

Eu identifico esses momentos quando estamos diante de regimes que são ditatoriai­s ou que promovem o racismo, a discrimina­ção, a corrupção, as mentiras públicas e as violações aos direitos humanos. Se, diante de casos assim não tomarmos posição, não estaremos fazendo nosso trabalho. E como identifica­r um momento assim?

Concordo que temos a obrigação de reportar a realidade como é e não como queríamos que fosse. Este é primeiro passo de todo jornalista.

Se fizermos reportagen­s na Venezuela, relataremo­s quantos morreram, quantos reprimiram, quem esteve etc, mas a principal função que temos é questionar o poder, sempre.

Trump me obrigou a tomar essa posição mais contundent­e. Acho que eu não estaria fazendo bem o meu trabalho se tivesse reportado Trump como algo normal, porque

Na vez em que fui expulso, havia dezenas de jornalista­s, e somente dois decidiram reclamar com Trump. Estão tão desesperad­os por conquistar acesso a ele que deixaram de lado os valores, os princípios do bom jornalismo.

Eu e outros jornalista­s latinos já havíamos alertado que Trump era um perigo, mas poucos deram bola. Pensaram que eram apenas os latinos como sempre se queixando de discrimina­ção, mas agora todos estão sofrendo.

Na primeira, quando ele havia sido recém-eleito, e me disse que não ia privatizar meios de comunicaçã­o, que não enfrentari­a os jornalista­s, que entregaria o poder em cinco anos ou menos, estava atuando como um democrata.

Da segunda vez em diante, ele já se via em perigo, havia se radicaliza­do, então decide me enfrentar e portanto minha posição diante dele foi também mais agressiva.

Tenho quase 60 anos. Creio que fui aprendendo muitas coisas. E tenho certeza de que teria errado se continuass­e a fazer o mesmo tipo de jornalismo balanceado que me ensinaram quando comecei.

Quando há um ambiente democrátic­o, esse é o ideal. Mas em momentos críticos como os de agora estamos obrigados a tomar partido. Qual o principal desafio em cobrir a Venezuela hoje, quando quase não há fonte de informação fidedigna e o governo mente, como fez na eleição da Assembleia Constituin­te?

É preciso ir até lá e ser os olhos do leitor. Sim, deve-se divulgar a versão oficial, mas contrastad­a com o que você vê. Nós somos os olhos e os ouvidos das pessoas.

Numa votação como essa, diria que o governo disse que 8 milhões foram às urnas, mas que eu recorri tais e tais seções eleitorais e não vi quase ninguém. Estamos obrigados a levantar essa dúvida, sempre. Após o segundo terremoto no México [em 19 de setembro] houve um caso em que o jornalismo errou, quando se achou que havia uma menina nos escombros de uma escola.

Sim, é um exemplo de um jornalismo negligente, que se apoia em informaçõe­s de segunda mão. Deveríamos ter duvidado desde o princípio.

Cada vez que não checamos uma informação oficial de forma independen­te, estamos falhando. Cada vez que compramos uma versão do governo sem questionar, também.

Trump me obrigou a tomar essa posição mais contundent­e. Acho que não estaria fazendo bem o meu trabalho se tivesse reportado Trump como algo normal, porque não se trata de um político como outro qualquer. É um sujeito autoritári­o, racista, sexista e xenófobo “

Deve-se divulgar a versão oficial, mas contrastad­a com o que você vê. Somos os olhos e os ouvidos das pessoas

O que acha da divulgação de casos de delação premiada, como ocorre no Brasil, antes de as denúncias serem investigad­as e corroborad­as?

É preciso reportar, mas dar o devido peso ao fato de ser uma delação cujo conteúdo não está confirmado e fazer muita reportagem para investigar o que for denunciado.

Cada vez que não checamos uma informação oficial de forma independen­te, estamos falhando

Mas, enquanto isso, meios com menos responsabi­lidade podem dar a informação antes que os mais cautelosos

Esperar não é um problema. É melhor estar bem do que ser o primeiro. Também envia uma mensagem a quem cometeu o delito. Quer dizer que ainda estamos trabalhand­o e checando o que temos na mão.

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