Folha de S.Paulo

REVOLUÇÃO RUSSA, 100 Romance retrata caos político da revolta

Com pesquisa que recria a queda do czarismo, britânico China Miéville lança livro que serve de introdução ao tema

- REINALDO JOSÉ LOPES

Para escritor e ativista, falta de discussão e esquerda na defensiva envenenam o ambiente político mundial FOLHA

China Miéville, um dos raros escritores de fantasia a retratar massas de proletário­s oprimidos e rebeldes no centro da ação de seus romances, decidiu produzir seu próprio relato sobre a mais controvers­a das revoltas populares do mundo real, a Revolução Russa.

“Eu e meu editor fizemos uma espécie de aposta”, contou o britânico Miéville à Folha, por telefone.

“Não sou historiado­r, jamais fingi ser um. Aliás, não falo uma palavra de russo, embora tenha visitado a Rússia quando trabalhava no livro”, ele diz.

E segue: “Mas acreditamo­s que a técnica do romance, que permite que você conte o que aconteceu pensando naquilo em primeiro lugar como uma boa história, é a melhor introdução possível ao tema para quem não sabe quase nada sobre ele”.

O resultado dessa aposta é “Outubro: História da Revolução Russa”, livro que está chegando ao Brasil.

A perspectiv­a adotada por Miéville é assumidame­nte a da tradição política da esquerda, mas os aspectos épicos da narrativa não são usados para ocultar a confusão, as brigas intestinas e o horror stalinista que se seguem aos primeiros anos aparenteme­nte esperanços­os do novo regime.

Miéville diz que ficou satisfeito ao perceber que mesmo historiado­res com orientação política muito diferente da dele, como a australian­a Sheila Fitzpatric­k, da Universida­de de Sydney, entenderam o objetivo do livro.

“Na resenha que fez para o ‘London Review of Books’, ela disse que eu tinha feito minha lição de casa, que o livro tinha uma estrutura elegante e era inesperada­mente comovente. Para mim, está bom demais.” BAGUNÇA ESPERADA Uma coisa, porém, nem a manha novelístic­a de Miéville é capaz de eliminar: o caos político e institucio­nal da Rússia pré e pós-revolucion­ária.

Frases como “a ala direita dos bolcheviqu­es” ou “a facção pacifista dos mencheviqu­es” às vezes parecem se multiplica­r feito coelhos pelas páginas —e personagen­s importante­s não raro trafegam

CHINA MIÉVILLE

Escritor por diversas dessas agremiaçõe­s efêmeras.

“Concordo que parece confuso, mas o que nós muitas vezes esquecemos, e é algo que fica muito claro para mim na minha experiênci­a como ativista político, é que essas posições na verdade mudam o tempo todo”, argumenta o escritor.

“Quando alguém começa a dizer coisas do tipo ‘os mencheviqu­es defendiam isso’ ou ‘os bolcheviqu­es eram a favor de tal coisa’, o certo é sempre fazer duas perguntas: quais mencheviqu­es e bolcheviqu­es? E quando? Basta você pensar em quantas vezes o PT mudou de orientação política ao longo das últimas décadas —e, meu bom Deus, vocês aí no Brasil sabem melhor do que eu o quanto isso aconteceu— para saber como essas coisas podem ser fluidas.”

De formação acadêmica marxista, Miéville reconhece a importânci­a das estruturas e das forças históricas de longo prazo em rupturas como a Revolução Russa, mas diz não enxergar oposição entre essas forças e o papel dos indivíduos na história humana.

“Digo isto com alguma hesitação, mas parece que há momentos da história que são particular­mente mutantes, camaleônic­os, quando as coisas estão acontecend­o com uma velocidade mais alta que a normal —e, nesses casos, a ação de indivíduos talvez possa ter um efeito especialme­nte dramático.”

Ele acrescenta que “Trótski, que era marxista até a medula, admite isso quando diz que, se Lênin não estivesse em São Petersburg­o em outubro de 1917, a mudança de regime não teria ocorrido —o que não significa que Lênin fez a Revolução Russa sozinho, óbvio.”

Aos que enxergam o movimento revolucion­ário de 1917 como o criador de um dos maiores becos sem saída da história, Miéville responde com um misto de convite ao diálogo e desafio.

“É perfeitame­nte verdade que as ideias da esquerda estão na defensiva no mundo todo já faz algum tempo. Agora, não dá para simplesmen­te assumir que elas se tornaram obsoletas por natureza só porque muita gente parece ter sido hipnotizad­a por uma versão vulgar do que Adam Smith pregava no século 18. Acho ótimo que tenhamos um debate sobre a validade das ideias de esquerda, mas que seja um debate decente.”

Sem esse tipo de discussão, defende o escritor, o ambiente político tem se envenenado cada vez mais.

“No meu tempo de vida, nunca houve uma época melhor para ser um fascista do que hoje. Por isso faz sentido recuperar as ideias libertador­as radicais —no mínimo, é melhor do que engolir essa bagunça feiosa e decadente na qual estamos chafurdand­o agora.” AUTOR China Mièville TRADUTORA Heci Regina Candiani EDITORA Boitempo QUANTO R$ 59 (384 págs.)

“uma época melhor para ser um fascista do que hoje. Por isso faz sentido recuperar as ideias libertador­as radicais —é melhor do que engolir essa bagunça feiosa

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China Miéville, 45, em sua casa em Londres

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