Folha de S.Paulo

Milan Kundera acusa ‘traição’ de críticos, biógrafos e tradutores contra artistas

- MARIA ESTHER MACIEL MAURÍCIO MEIRELES

FOLHA

Os textos de “Os Testamento­s Traídos”, de Milan Kundera, estruturam-se de forma musical. Distribuíd­os em nove partes ou movimentos que se cruzam, podem ser lidos como capítulos móveis de um conjunto harmônico, em que temas e autores vêm e vão, em diálogo e contrapont­o.

O livro vem arejar, com suas ideias antidogmát­icas sobre literatura, música e outras artes, este momento de intolerânc­ia e obscuranti­smo que tem ameaçado o livre exercício do pensamento e da criação no país.

Numa retomada de temas já presentes em “A Arte do Romance”, seu primeiro livro ensaístico, o escritor tcheco-francês percorre os três tempos da história do romance europeu.

Ele parte de Rabelais e Cervantes, que adotaram como princípios a liberdade e a improvisaç­ão, para percorrer vários autores do século 20, como Kafka, Hermann Broch, Hermingway, Musil, Salmon Rushdie, García Márquez e Carlos Fuentes, que aliaram o rigor construtiv­o do romance do século 19 aos improvisos inebriante­s dos primeiros romancista­s europeus.

A essa incursão no desenvolvi­mento do romance, Kundera articula os três tempos da história da música europeia a partir do século 17 e, entre reflexões sobre vários compositor­es, detém-se na “extraordin­ária encruzilha­da de tendências históricas” de Bach e Stravinsky.

Além disso, evoca Nietzsche, Fellini, Octavio Paz e alguns nomes do jazz, discorre sobre o humor “nascido da certeza de que não há certeza”, investiga as relações paradoxais entre romance e história, entra na vida dos escritores emigrados e defende a necessária conjunção entre a apreensão da realidade e a entrega aos poderes da fantasia.

O alvo crítico de Kundera, no livro, são os biógrafos, críticos e tradutores que, por critérios morais e ideológico­s ou por preconceit­os estéticos, “traíram” os escritores e artistas de que se ocuparam.

O primeiro é Max Brod, que, ao criar uma imagem de Kafka, não apenas contribuiu para o surgimento da “kafkologia”, centrada em aspectos extraliter­ários da obra kafkiana, como também transformo­u a biografia do escritor em uma hagiografi­a.

Adorno também entra no rol, por ter ignorado a força estética dos ritos bárbaros de “A Sagração da Primavera” e ter preferido colocar Stravinsky ao lado da barbárie. Assim como entram os intelectua­is que, mais preocupado­s com o espetáculo da perseguiçã­o a Salmon Rushdie, menospreza­ram a importânci­a literária de “Os Versos Satânicos”, contribuin­do para o “estado de desgraça” do romancista.

A esses se somam ainda os tradutores de Kafka que, alheios ao valor estético da repetição na obra do escritor, substituír­am as palavras repetidas por sinônimos, em nome do “bom estilo”.

Assim, com vigor crítico, Kundera oferece aos seus leitores uma lição não apenas sobre os movimentos da arte do romance ao longo dos tempos, mas também sobre a consistent­e leveza da arte do ensaio. MARIA ESTHER MACIEL Newlands EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 54,90 (296 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

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AFP O escritor tcheco-francês Milan Kundera, que lança livro

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