Folha de S.Paulo

Aquilo que a dança me fez

Concórdia, 2001

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muito lento e não há música.

Na segunda, o público se posiciona no entorno de um quadrado e, num clima anos 70, os intérprete­s, agora vestidos, dançam em tom de manifesto, embebidos de agressivid­ade política. O público de Concórdia se desestabil­iza; ri, gargalha, não consegue olhar, estranha, deixa a peça.

Eu aprecio a reação do público de um ponto de vista bastante particular. Enquanto todos estão no palco, estou escondido embaixo das cadeiras vazias do espaço destinado à plateia do Teatro Municipal Maria Luiza de Matos.

Explico: pelo fato de os bailarinos estarem nus em cena, a delegada responsáve­l pela proteção dos menores da cidade impediu a entrada daqueles que ainda não tinham 18 anos. Naquele momento, eu tenho 14 e muita vontade de ir ao teatro. Desde os sete, não perco nenhum espetáculo que ali chega.

Não queria perder a peça que veio do Rio, um espetáculo de dança contemporâ­nea, essa misteriosa categoria que eu nem sabia o que podia ser e já me causava uma curiosidad­e furiosa.

Sendo assim, três horas antes do espetáculo, desço até o palco e encontro Lia e sua companhia. Converso com eles, narro o episódio de censura e minha grande vontade de ver a peça.

Semhesitar,meacolhemc­alorosamen­te, dizendo para eu ficar ali, porque iriam dar um jeito. A peça começa e me vejo diante de uma escultura política brava e ruidosa, enfeitiçad­o. Queria fazer parte daquilo, sentir o corpo como disponibil­idade aberta, vibrante, exposta.

“Aquilo de que Somos Feitos” impulsiono­u meu desejo de partir, confirmou minha vontade de seguir com as artes cênicas, abriu as possibilid­ades para uma vida de artista. Fui embora aos 17 anos para Florianópo­lis.

Em 2008, aos 21, faço audição para entrar na companhia da Lia —é praticamen­te uma residência ou um estágio, durando quase um mês. Em abril, me mudo para o Rio. A companhia está fazendo 20 anos de existência e, no ano em que chego, retoma as peças de seu repertório para turnês nacionais e internacio­nais.

Começo a dançar “Aquilo de que Somos Feitos”, a aprender a coreografi­a. Adentro sua estrutura, tanto quanto mergulho na memória de espectador adolescent­e, aquela situada no teatro de Concórdia. Memória deslocada e transforma­da.

Cada vez que entrava em cena, lembrava o menino escondido, impedido, e expulsava a censura por meio do movimento, pelo gesto e pela força de ser o corpo que queria ser quando vi pela primeira vez o espetáculo. Um corpo descoberto, sem amarras, metamorfos­e constante e nu de identidade fixa.

Para mim, a dança tem disso: ela oferece a possibilid­ade de inventar um corpo, um mundo, um modo de ser específico, que não aqueles que se distribuem por aí, nas centrais de valores globais.

Com Lia, entendi que um gesto dançado não é só efemeridad­e pura, mas tem potência de inscrição nos nossos corpos e pode reclamar sua existência tardiament­e.

Fico na companhia até 2011, um pouco antes de me mudar para a França e começar minha carreira de coreógrafo. Alguns meses depois, crio “Céu”, meu primeiro solo, e reconheço nesse trabalho a tentativa de interpreta­ção da vitalidade encontrada na companhia de Lia. Mais uma vez, a dança me prova que seu impacto pode ter uma vida longa, se desejarmos.

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