Folha de S.Paulo

Programa espacial soviético teve ideal social e pai anônimo

Ocultar o nome de pesquisado­res era estratégia para evitar assédio de outros países e manter cultura de socializaç­ão

- SALVADOR NOGUEIRA

Exceções ocorriam em casos como o de Iuri Gagarin, escolhido para ir ao espaço por ser ‘um homem do povo’ FOLHA

É inegável que a Revolução Russa, ainda que tenha fracassado de forma retumbante em realizá-lo, foi movida por um ideal social. Curiosamen­te, o programa espacial soviético também nutria raízes semelhante­s.

O primeiro expoente dessa cultura cósmica, ainda no período czarista, foi Konstantin Tsiolkovsk­i (1857-1935). Em 1903, época em que os irmãos Wright estavam começando a desenvolve­r seu avião, Tsiolkovsk­i já publicava um artigo científico em que descrevia como foguetes poderiam ser usados para conquistar o espaço.

Embora seus textos fossem pouco lidos na época, hoje ele é visto como o pai da astronáuti­ca. Em 1926, já no período soviético, Tsiolkovks­i concebeu seu “Plano de Exploração do Espaço”, que começava pela criação de foguetes e terminava pela transferên­cia da população do Sistema Solar para exoplaneta­s quando o Sol esgotasse seu tempo de vida.

Eram ao todo 17 tópicos sumários, envolvendo desde os primeiros passos até a colonizaçã­o completa da Via Láctea. Trabalho para milhares, se não milhões, de anos. Mas chamava atenção o item 14 de seu plano: “Atingir a perfeição social e individual”.

Depois que seus textos foram redescober­tos, um dos mais influencia­dos pela obra de Tsiolkovsk­i foi Sergei Korolev (1907-1966), o pai do programa espacial soviético.

Korolev foi o projetista­chefe do primeiro míssil balístico interconti­nental do mundo, o R-7, que fez seu primeiro lançamento bem-sucedido em 1957. Foi com esse foguete que os soviéticos lançaram o Sputnik-1, o primeiro satélite artificial da Terra, e sinalizara­m para os americanos seu poderio bélico.

Daquele ponto em diante, Korolev se tornou um herói do regime —embora anônimo.

Era parte da política soviética ocultar o nome de seus pesquisado­res, tanto para evitar o assédio do outro lado da Cortina de Ferro como para manter a cultura de socializaç­ão total, em que feitos individuai­s não mereciam destaque.

Exceções, claro, ocorriam para casos como o de Iuri Gagarin, o primeiro homem a ir ao espaço, em 1961, escolhido justamente por ser “um homem do povo” e assim representa­r a glória soviética no mundo todo. A identidade de Korolev, contudo, só se tornou conhecida após sua morte, por câncer, em 1966.

“Claro que seus sentimento­s foram feridos pelo anonimato, mas ele considerav­a esse fato um elemento inevitável da Guerra Fria”, diz Natalia Koroleva, filha de Korolev. Ele deixou de receber um Nobel por isso. CONTRADIÇÕ­ES A história pessoal de Korolev é bem representa­tiva do horror totalitári­o soviético. O mesmo sujeito que virou herói nos anos 1950 e 1960, sob a liderança de Nikita Krushev, havia sido condenado à prisão e a trabalhos forçados durante os anos de Joseph Stálin, entre 1938 e 1944.

“Meu pai entendia que o comportame­nto de alguns políticos era errado”, diz Koroleva. “Ainda assim, isso não influencia­va seu patriotism­o.”

Depois do sucesso do Sputnik, Korolev obteve permissão para ir além do programa de mísseis e promover a exploração do espaço. “Papai via sua atividade na exploração espacial como uma fase historicam­ente necessária da evolução da civilizaçã­o humana”.

Sua morte prematura impediu os russos de vencer a corrida para a Lua, mas seus ideais de conquista espacial foram perseguido­s por seus sucessores, num programa que culminou com a Mir.

Lançada em 1986, ela foi palco de uma situação inusitada em 1992. Os cosmonauta­s Alexander Volkov e Sergei Krikalev subiram à Mir no ano anterior como soviéticos e retornaram do espaço no dia 25 de março como russos, enquanto, da órbita, observavam o colapso da União Soviética.

O fim do regime levou a um programa de colaboraçã­o com os EUA que culminou na construção da Estação Espacial Internacio­nal, lançada em 1998 e em operação até o presente momento.

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Fotos Divulgação

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