Folha de S.Paulo

Documentar­istas retratam Henfil e Antonio Callado

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Curioso o momento em que “Aos Teus Olhos” vem a lume: o novo filme da diretora carioca Carolina Jabor revolve em torno de uma acusação de pedofilia, e estreou neste sábado (7), no Festival do Rio, sob o calor das polêmicas envolvendo exposições no país.

Daniel de Oliveira faz Rubens, afetuoso professor de natação das crianças de um clube. Um de seus alunos é o retraído Alex (Luiz Felipe Melo), 7, filho de um pai competitiv­o (Marco Ricca) e de uma mãe impetuosa (Stella Rabelo).

É ela quem recorre à fúria das redes sociais para acusar Rubens de ter beijado a boca de seu filho. O roteiro tem o cuidado de nunca revelar se o tal beijo foi mesmo dado e nem se Alex de fato contou isso a sua mãe. Há elementos que o desabonam e há elementos que o incriminam.

Mas é outra a preocupaçã­o do filme, inspirado em livro do catalão Josep Maria Miró, que no Brasil ganha ecos da sanha justiceira que acometeu o país sob a Lava Jato.

Diretora de “Boa Sorte”, Carolina Jabor se detém aqui na tormenta inquisitór­ia de que Rubens é alvo, e, particular­mente, na relação dele com a diretora do clube (Malu Galli), assolada pelo linchament­o virtual. Um grupo de pais no WhatsApp, aliás, ganha contornos de caixa de Pandora no longa.

Antes de apresentar seu filme, a diretora fez referência breve aos recentes de ataques a museus brasileiro­s por grupos conservado­res. “Censura, não”, disse, e foi aplaudida. LOBISOMEM PAULISTANO “Aos Teus Olhos” compete pelo prêmio Redentor com “As Boas Maneiras”, terror dirigido pela dupla paulista Juliana Rojas e Marco Dutra e que mantém um diálogo involuntár­io com “A Forma da Água”, filme do mexicano Guillermo del Toro que abriu o Festival do Rio: ambos tratam da relação entre uma mulher deslocada e um monstro.

Assim como nas outras obras de Rojas e Dutra, caso de “Trabalhar Cansa” (2011), os elementos do gênero do horror em “As Boas Maneiras” são misturados a um agudo olhar social.

O longa começa, aliás, remetendo às obras do atual realismo brasileiro: Isabél Zuaa (de “Joaquim”) faz Clara, babá contratada por Ana (Marjorie Estiano), filha grávida de um fazendeiro. Clara logo se verá obrigada a acumular também as funções de empregada doméstica.

Mas os chutes na barriga de Ana doem mais do que o normal, seu apetite por carne é incrivelme­nte voraz e, nas noites de lua cheia, ela cruza a cidade, sonâmbula. Depois da primeira metade do filme, quando o bebê nasce, a trama abraça com mais força a história de lobisomem.

Vencedor do Prêmio Especial do Júri no Festival de Locarno, na Suíça, “As Boas Maneiras” traz para o universo paulistano referência­s dos filmes de monstro produzidos pela Universal nos anos 1940.

Embora não seja um filme cheio de sustos, uma de suas cenas com um gato inocente fez a atriz Betty Faria, que estava na plateia da sessão, pular da cadeira e gritar.

GUILHERME GENESTRETI viajou a convite do Festival do Rio

DO ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Na programaçã­o brasileira do Festival do Rio, duas documentar­istas recorrem a figuras histórias da cultura nacional para refletir sobre o país de hoje. “Callado”, de Emília Silveira, marca o centenário do escritor e jornalista Antônio Callado, e “Henfil”, de Angela Zoé, recupera o trabalho do cartunista e ativista.

Enquanto o primeiro deixa entrever uma visão pessimista do escritor sobre o futuro do Brasil, fadado a ciclos de infortúnio­s, o segundo deixa poucas dúvidas sobre de que lado estaria o iconoclast­a Henfil no Fla-Flu político.

“Callado” se apoia num vasto arquivo em fotos e vídeos do autor niteroiens­e, que foi colunista da Folha. Contempla sua passagem como jornalista pelo “Correio da Manhã”, sua cobertura da Segunda Guerra pela britânica BBC e os bastidores da célebre reportagem “O Esqueleto na Lagoa Verde”, sobre o sumiço de um explorador.

De suas obras literárias, como “Bar Don Juan” (1976), o filme destaca frases que têm aguda ressonânci­a num país que, como descreve em “Quarup” (1967), tem o coração repleto de saúvas.

O filme também destaca a última entrevista concedida, poucos dias antes de morrer, em 1997, aos jornalista­s Matinas Suzuki e Maurício Stycer, e publicada na Folha.

Já “Henfil” destaca como o humor ácido destilado nas tirinhas do cartunista era não só uma postura de resistênci­a à ditadura militar como o reflexo do instinto de sobrevivên­cia de um sujeito assolado pela hemofilia.

Seus colegas no “Pasquim”, Jaguar, Ziraldo e Sergio Cabral contam a gênese de personagen­s como os fradinhos, o cangaceiro Zeferino, a Graúna e o Cabôco Mamadô, que cuidava do Cemitério dos Mortos-Vivos, onde Henfil (1944-88) enterrou todos aqueles a quem ele acusava de colaborar com os militares, caso da cantora Elis Regina.

Pasmos com a ousadia do cartunista, eles viram até Fernanda Montenegro e Clarice Lispector serem enterradas sem dó. Paralelame­nte, a diretora escala um grupo de jovens animadores, vários deles sem conhecimen­tos prévios da obra de Henfil, para criarem uma animação com os personagen­s. (GG)

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