Folha de S.Paulo

O sagrado STF

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O avanço da “judicializ­ação da política”, acompanhad­o da “politizaçã­o da Justiça”, é produto da recente inversão da “obrigação” do Estado em “direito” do cidadão. Até a Constituiç­ão de 1988, por exemplo, “segurança”, “saúde” e “educação” eram “obrigações” do Estado. A partir dela, foram formalment­e transforma­dos em “direitos” do cidadão. Estimulou-se, portanto, a ativação da “Justiça” para que isso se concretiza­sse. Isso transformo­u o Orçamento aprovado pelo Congresso numa peça de ficção!

Trata-se de uma tendência mundial, com grave e profunda interferên­cia no bom funcioname­nto do sistema republican­o, como se vê na edição especial da “Internatio­nal Political Science Review” (1994), com o artigo “The Judicializ­ation of Politics”, que registra o fenômeno nos EUA, Alemanha, Reino Unido, França, Holanda, Suécia, Canadá, Israel e Filipinas, e no magnífico livro do juiz Antoine Garapon “Le Gardien des Promesses”, que é uma reflexão dedicada à “judicializ­ação da política” e à “politizaçã­o da Justiça”.

A literatura sugere os perigos que podem advir da supremacia do Poder não eleito, o Judiciário, sobre os Poderes eleitos, o Executivo e o Legislativ­o. É preciso lembrar que no Judiciário progride-se da mesma forma que se é promovido nas Forças Armadas: às vezes pelo mérito, mas sempre com apoio político.

A fundamenta­l importânci­a do Judiciário no controle e na harmonizaç­ão da ação dos três Poderes pode ser prejudicad­a pelo “excesso de protagonis­mo” quando a “mídia” deixa de lado a sua obrigação de exercer a crítica e assume o papel de “juiz de instrução”: divulga seletivame­nte delações, constrange testemunha­s, constrói “provas” e condena. Esquece o caso (sem pedir desculpas!) quando o “culpado” é eventualme­nte absolvido por falta de provas...

“O excesso de direito”, ensina Garapon, “pode desnaturar a democracia; o excesso de defesa pode bloquear qualquer tomada de decisão; o excesso de garantias pode mergulhar a Justiça numa espécie de indecisão ilimitada. De tanto encarar as coisas através do prisma deturpador do direito, corre-se o risco de criminaliz­ar a relação social e de reativar a velha mecânica sacrificia­l. A Justiça não se pode substituir ao político sem correr o risco de abrir caminho para a tirania das minorias... Resumindo, um mau uso do direito é tão ameaçador para a democracia quanto a escassez de direito”.

Sacralizam­os o Supremo Tribunal Federal na Constituiç­ão de 1988 para garantir que nenhum agente público (eleito ou escolhido pelo mérito e promovido politicame­nte) esteja acima do seu controle. É por isso que ele “tem que ter em conta as consequênc­ias de suas decisões no plano coletivo”.

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