O Estado tem de exercer o poder com a devida parcimônia
NÃO SE PODE RETIRAR DA FUNÇÃO QUEM OCUPA CARGOS ELETIVOS APENAS PELA POSSIBILIDADE DE DESTRUIÇÃO OU OMISSÃO DE PROVAS, DIZ JUIZ
DO RIO
Em meados de setembro, o juiz sergipano Roberto Caldas, 55, presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, estava indo a Florianópolis para assinar um convênio com a Universidade Federal de Santa Catarina, onde também palestraria.
Um dia antes do evento, o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, foi preso provisoriamente pela Polícia Federal sob suspeita de tentar obstruir investigações que apuravam desvios de recursos públicos ocorridos antes de sua gestão.
“Um dia depois, foi relaxada a prisão. Quer dizer, o que houve aí? A prisão é uma pena máxima, ela não pode ser usada para dizer a todos ‘agora nós temos o poder, se cuidem’”, afirmou Caldas à Folha, em entrevista no fim de setembro, antes do suicídio de Cancellier.
O caso do reitor da UFSC foi um dos muitos exemplos de abuso de poder que o Brasil vem testemunhando, segundo o magistrado. “Há coisas que estão assustando os juristas de outras partes do mundo”, disse.
Caldas falou com a Folha no Rio, onde esteve para um evento na Defensoria Pública do Estado. Nele, divulgou o trabalho da Corte Interamericana e incentivou os defensores a utilizar em suas ações a jurisprudência do órgão, que é obrigatória para o Brasil.
Ex-integrante da Comissão deÉticaPúblicadaPresidência e do Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção durante os governos Lula e Dilma [2006 a 2012],
Caldas também criticou o governo Temer e as reformas trabalhista, previdenciária e eleitoral. Folha - O sr. tem sido crítico da atuação da Lava Jato. Por quê?
Roberto Caldas - Nós, da área jurídica, percebemos vários abusos. Quando a arma é poderosa, muitas vezes o indivíduo a maneja mal, utiliza em excesso. E isso pode virar uma ação ilícita, arbitrária.
Em alguns casos, policiais, procuradores e magistrados estão extrapolando os seus mandatos constitucionais, animados com o poder que têm. As investigações têm parâmetros de respeito ao indivíduo. Gravações, por exemplo, têm de ser autorizadas judicialmente e com prazo.
É uma prova que só pode ser utilizada quando outras não puderem ser.
O Estado não pode passar a cometer abusos delituosos, senão perderemos o trem da história, na medida em que acaba ficando desacreditado em alguma decisão que venha a ser anulada. O sr. acha que tem havido abuso nas prisões?
Olha, em algumas, aparentemente sim, porque logo houve relaxamento. Algumas conduções que aparentemente não seriam necessárias. Como é que você vai conduzir coercitivamente se o indivíduo nunca se negou a ser conduzido espontaneamente?
Estão se queimando etapas, como que para mostrar força e um poder arbitrário. O Estado tem de exercer seu poder com a devida parcimônia. Mas alguns indivíduos não podem atrapalhar as investigações?
A prisão já é uma punição. Se o indivíduo chegou a praticar algum ato, ela tem razão. Mas exercê-la pelo sim- ples potencial de atrapalhar investigações, aí não. Aí são os limites que o Estado de Direito impõe.
O fato de que alguém está em posição de poder não significa que vá atrapalhar. Muitos não o fazem porque sabem que é crime. Não se pode retirar da função quem ocupa cargos eletivos apenas pela possibilidade de destruição ou omissão de provas.
É preciso trabalhar com o devido processo: você intima, busca esclarecimento da pessoa investigada, faz uma acareação.
Por exemplo, eu ia fazer uma palestra na UFSC e assinar um protocolo com o reitor e, no dia anterior, ele foi preso.
Veja que circunstância: não é que não possa haver prisão temporária, mas a prisão para investigação sem o indivíduo nem sequer saber por que está sendo preso é algo inusitado, para dizer o menos.
Um reitor universitário detém a representação da autonomia da universidade, não se pode detê-lo dessa maneira. E ele foi apartado também do comando da universidade, para o qual foi eleito. Não o conhecia, mas me espanta que alguns princípios sejam esquecidos.
Um dia depois, foi relaxada a prisão. Quer dizer, o que houve aí? A prisão é uma pena máxima, ela não pode ser usada para dizer a todos “agora nós temos o poder, se cuidem”.
Prisão não é vingança do Estado, é para procurar recuperar alguém, e me parece que isso não está acontecendo no Brasil. Há coisas que estão assustando os juristas de outras partes do mundo. A maioria da opinião pública parece estar de acordo com essas prisões.
Os costumes nem sempre são sadios. Há os que são criminosos: a cultura do estupro, a cultura do preconceito racial, do preconceito em relação a opções sexuais, a intolerância religiosa. Costumes precisam ser enfrentados com educação.
A Corte Interamericana tem concedido medidas cautelares em relação ao Brasil para que atue nas prisões para retirar os detentos sem pena, que são muitos.
O Brasil, hoje, é dos países que mais pune, e não tem dinheiro para pagar isso, porque é caro. Então o que resta é deixar pessoas sendo cuidadas pior do que animais.
Pode-se construir o triplo de vagas em estabelecimentos carcerários que não vai se alcançar. Temos de enfrentar essa cultura da prisão.
E mais: quem é destinatário dela são os jovens pobres e negros, que são detidos massivamente ou mortos em chacinas, muitas vezes execuções sumárias, depois vem a explicação, “ah, foi enfrentamento”.
Não foi, foi pena de morte executada sem julgamento, o que é muito grave.