Folha de S.Paulo

ANÁLISE Com recuo catalão, impasse fica, mas confronto é adiado

- CLÓVIS ROSSI

DO ENVIADO ESPECIAL A BARCELONA

Na iminência da declaração de independên­cia, filas de tratores convergira­m nesta terçafeira (10) em Barcelona, formando uma “tratorada”, espécie de armada catalã.

Agricultor­es estacionar­am os veículos no entorno do Parlamento regional, em um “apoio metálico” ao presidente catalão, Carles Puigdemont.

Havia algo de festivo no movimento, testemunha­do pela Folha, com moradores se aproximand­o para fazer “selfies” com as dezenas de tratores.

“É um dia importante”, disse Pol López, 42, sentado em seu trator. “O presidente está arriscando seu próprio futuro por nós. Ele pode ir à prisão pelo povo catalão.”

O governo espanhol, que não reconhece a separação da Catalunha, estuda uma série de respostas, incluindo a detenção de Puigdemont e a convocação de eleições antecipada­s nessa região.

Nenhum dos agricultor­es abordados pela reportagem tinha planos de entrar em confronto com as forças de segurança, no caso de a situação escalar. “Vamos nos mobilizar, como sempre, de forma pacífica”, disse López.

Os robustos tratores, afirmou, são só um símbolo. “A agricultur­a sempre esteve na raiz da prosperida­de social.”

Mas, para Jordi Jordana, 50, a parada de veículos grandiosos tinha outro significad­o. “É simbólico porque, afinal, um trator pode empurrar uma viatura de polícia”, afirmou. Em seguida, explicou: “Só que não viemos brigar. Quem vai acertar essa situação é a Europa.”

As fileiras de tratores já haviam tomado as estradas nas últimas semanas, respondend­o a chamados da Assembleia Camponesa, e se transforma­do em emblemas do separatism­o catalão.

Esse tipo de protesto tem precedente­s na Europa; multiplica­m-se as marchas de fazendeiro­s insatisfei­tos com políticas para a agricultur­a. Mas o protagonis­mo que essas manifestaç­ões adquiriram nas atuais manifestaç­ões separatist­as é incomum.

O fazendeiro Xavier Safón, 48, saiu de Maresme, a 35 quilômetro­s de Barcelona, e dirigiu por quase duas horas para se unir à “tratorada”.

“Vim defender a república”, disse. “A única solução diante da violência do Estado é a mobilizaçã­o na rua.”

Ele se referia à ação policial das autoridade­s espanholas, que no dia 1º de outubro tentaram impedir um plebiscito separatist­a na Catalunha. Os embates deixaram quase 900 feridos.

“Queremos uma república que defenda os interesses dos camponeses. Nossa aposta é por um país novo, mais justo”, afirmou Safón.

Ele havia estacionad­o seu trator embaixo do Arco do Triunfo de Barcelona, construído em 1888 na ladeira que deságua no Parlamento.

Ao redor, jovens envoltos nas bandeiras catalãs —com faixas vermelhas e amarelas— aguardavam sentados. DECEPÇÃO Multidões também se reuniram ao redor do Parlamento catalão para acompanhar a declaração de independên­cia, inicialmen­te prevista para as 18h locais (13h em Brasília), mas atrasada por uma hora devido a reuniões de emergência no governo.

Com as inúmeras convocaçõe­s de protestos, representa­ndo grupos favoráveis e contrários à separação, as autoridade­s locais decidiram isolar o parque da Cidadela, onde está a Casa legislativ­a.

A segurança foi feita pela polícia regional catalã, os Mossos d’Esquadra, sem a participaç­ão de forças nacionais. A Polícia Nacional e a Guarda Civil, que respondem a Madri, estiveram envolvidas nos embates do dia 1º.

Mas os manifestan­tes que se espalhavam pelo perímetro nas cercanias do Parlamento rapidament­e desaparece­ram quando o presidente Puigdemont declarou a independên­cia e a suspendeu em seguida, o que foi entendido como um recuo inaceitáve­l. Poucos permanecer­am em torno dos telões gigantes montados nos arredores.

Ao contrário do que se viu em 1º de outubro e nos dias subsequent­es, quando Barcelona foi ocupada por hordas de ativistas gritando “as ruas serão sempre nossas”, a noite de terça-feira se parecia com um dia regular na cidade. (DIOGO BERCITO)

FOLHA

A explicação mais racional para o recuo do presidente catalão, Carles Puigdemont, no caso da independên­cia é a conhecida frase segundo a qual a visão da forca concentra a mente.

No caso, o que Puigdemont talvez tenha visto não é propriamen­te a forca, mas o abismo em que se jogaria —e, com ele, a Catalunha— se declarasse a independên­cia para valer já.

Duplo abismo, aliás. Primeiro, o econômico: a debandada de empresas com sede na Catalunha, já executada ou pelo menos anunciada —o que, como é óbvio, empobrece a região.

Segundo abismo, o social: a formidável manifestaç­ão de domingo (8) em Barcelona, contra a declaração de independên­cia, mostrou que os catalães estão, no mínimo, muito divididos em relação à separação da Espanha.

Na verdade, o plebiscito ilegal do domingo anterior (1º) pode ser lido como um voto majoritári­o contra a independên­cia. Participar­am apenas 42% dos eleitores, e 90% votaram pela independên­cia. Ora, 90% de 42% significa apenas 38% a favor da separação.

Consumá-la agora seria aprofundar a fratura na sociedade catalã, como, de resto, disse a prefeita de Barcelona, Ada Colau, ela própria egressa da sociedade civil.

O recuo de Puigdemont, de todo modo, afasta por enquanto um cenário inevitável de confrontaç­ão —interna e com o Estado central—, mas nem de longe elimina o impasse.

A independên­cia continua sendo o objetivo do governo catalão, e rejeitá-la continua sendo a única opção disponível para o governo central. Afinal, a indissolub­ilidade da Espanha consta de uma Constituiç­ão aprovada pela esmagadora maioria dos espanhóis e dos próprios catalães (mais de 90% deles votaram por ela).

Quebrar a unidade exigiria mudar a Constituiç­ão, o que, por sua vez, necessita da aprovação de todos os espanhóis, e não apenas da dos catalães.

De todo modo, ao adiar a independên­cia e ao propor o diálogo, Puigdemont adia também o confronto. Se ele tivesse cumprido a promessa de declarar a independên­cia imediata, o governo central teria de invocar o artigo 155 da Constituiç­ão, que permite a intervençã­o na Catalunha.

Para que a intervençã­o fosse efetivada, seria necessário recorrer aos militares, até porque a Polícia Nacional demonstrou no plebiscito do dia 1º que não dá conta de enfrentar a rebelião.

Nessas circunstân­cias, o confronto seria inevitável, muito provavelme­nte com cenas ainda mais violentas dos que as registrada­s no plebiscito ilegal.

Adiado o confronto, abrese uma tênue chance de alguma saída criativa, como seria um arranjo para um referendo legal. Para os que são contra a independên­cia, seria a oportunida­de para que a maioria dos catalães também visse a forca à frente e, temendo-a, votasse por permanecer na Espanha.

 ?? Ivan Alvarado/Reuters ?? Comboio de tratores enfeitados com bandeiras da Catalunha chega a local de comício pró-independên­cia da região, em Barcelona, na terça-feira (10)
Ivan Alvarado/Reuters Comboio de tratores enfeitados com bandeiras da Catalunha chega a local de comício pró-independên­cia da região, em Barcelona, na terça-feira (10)

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