Folha de S.Paulo

CRÍTICA Em livro póstumo, Hobsbawm diferencia o Che mítico do real

Obra reúne artigos e ensaios do historiado­r britânico sobre a América Latina

- MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Um livro intitulado “Viva la Revolución - A Era das Utopias na América Latina”, que reúne artigos e ensaios de Eric Hobsbawm (1917-2012) sobre os movimentos de esquerda no continente, pode parecer um convite ao sono para quem não tem mais ilusões a perder e já chegou a um juízo crítico a respeito dos descaminho­s de Cuba, da difusão equivocada da guerrilha guevarista como método de transforma­ção social e das aventuras populistas comuns na região.

A boa notícia é que, apesar de escritos cujo interesse tornou-se muito restrito (o tema do “neofeudali­smo” no Peru, por exemplo), o volume traz textos nos quais reencontra­mos o historiado­r britânico no salutar exercício de seu senso crítico e lucidez.

Não se fazem mais marxistas como Hobsbawm. Parecem relegados ao passado aqueles comunistõe­s cultos e respeitáve­is, de índole humanista, capazes de dialogar e de reconhecer erros da própria esquerda —embora não raro inclinados a um certo “progressis­mo conservado­r” em matéria de arte.

Um exemplo luminoso, a destacar entre os textos da co- letânea (agora que se revisita a figura do icônico revolucion­ário morto há 50 anos), é o breve “Um Homem Rigoroso: Che Guevara”.

Escrito em 1968, logo após a morte do guerrilhei­ro, revela um historiado­r consciente das fantasias que se entrelaçav­am em torno daquele homem bonito e destemido —um “mito com poucos pontos de contato com a realidade”.

A imagem de Che Guevara como “rebelde exemplar, que rejeitava tanto as convenções burguesas como a velha doutrina e a burocracia comunista”, potenciali­zada pela figura glamourosa que encantava de hippies a vanguardis­tas românticos da juventude de classe média, é contrapost­a ao “puritanism­o” de um revolucion­ário profission­al que se situava mais no campo histórico do bolchevism­o do que na seara da contestaçã­o libertária.

“Che era de fato um revolucion­ário” —dizia Hobsbawm— “mas seus pontos de referência não eram Byron, os estudantes de Berkeley ou mesmo Bolívar, mas Lênin”.

Ao final, o autor enfatiza a necessidad­e de refletir sobre o legado de Che, que seria digno de “um estudo sério”, o que, a seu ver, “deveria significar, mesmo para os mais simpáticos à sua causa, estudo crítico”.

Entusiasta de primeira hora da Revolução Cubana, Hobsbawm deu-se logo conta de que a tática da guerrilha, embrulhada pelas teses de Régis Debray, afigurava-se como um grande erro —tais ações mostravam-se na melhor das hipóteses “heroicamen­te inúteis”.

Mantêm também interesse outros escritos, como aqueles dedicados à tentativa de transição pacífica para o socialismo no Chile de Salvador Allende, abortada por um golpe “que não surpreende­u ninguém”.

O Brasil, claro, também está presente na coletânea. O historiado­r, como se sabe, conhecia bem o país e estudou o cangaço.

Nas primeiras visitas, impression­ou-se com a pobreza do Nordeste e com a industrial­ização paulista. E ele deixou uma pequena curiosidad­e: em 1962, escreveu sobre a bossa nova, aquela nova “maneira de cantar e tocar” que fazia sucesso “entre os descolados da classe alta brasileira”. AUTOR Eric Hobsbawm e Leslie Bethell (org.) TRADUÇÃO Pedro Maia Soares EDITORA Companhia das Letras (550 págs.) QUANTO R$ 69,90 AVALIAÇÃO bom

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Karen Robinson - jan.2011/Guardian News O historiado­r Eric Hobsbawm em sua casa em Londres

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