Folha de S.Paulo

O pior dos vícios

- FRANCISCO DAUDT COLUNISAS DESTA SEMANA: segunda: Leão Serva; terça: Vera Iaconelli; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

“YOU’RE A loser” é o pior chingament­o da língua inglesa, e sua tradução mais realista é “você é um merda” (“perdedor” e “fracassado” não fazem jus à força da expressão original). Isso se dá porque eles —sobretudo nos EUA— dividem o mundo em “winners” e “losers” (fodões e merdas, a partir de agora aqui referidos pela sigla f&m), as pessoas vivem na aflição de como serão classifica­das.

Isso pode ter começado entre os americanos, mas agora é fenômeno mundial, e sentimos essa guerra f&m a toda hora.

Explico: o sentimento de se ver como um “m” equivale a se perceber como um pária sem perspectiv­as na vida. É tão insuportáv­el, dá tanta raiva, que a pessoa fará qualquer negócio, até matar (ou se matar), para aliviá-lo. Mas a reação mais comum é buscar fazer alguém mais se sentir um “m” para ter um mini-triunfo como “f” (“Ora, ‘m’ é o outro, eu sou ‘f ’!”). Uma “defesa-f”. Esse mecanismo de defesa contra a angústia, se usado constantem­ente, torna-se uma doença, uma variação do jogo sadomasoqu­ista (s&m) sem as botas e o chicote e sem o fetiche sexual, só que esse é sutil e não tem graça nenhuma, a menos que se fale da graça do ridículo, do deboche e da humilhação, de se rir do outro, e não com o outro.

Torna-se um vício, o pior dos vícios. Vício é uma ação compulsiva que causa prazer imediato, mas dano ao próprio e a outros, como é o caso. Mas por que o pior? Por se incorporar à cultura como uma crença, uma ideologia. Pelo senso comum achar que a vida é assim, ao ponto que pensamos em alguém e automatica­mente já o classifica­mos no f&m.

Listo abaixo alguns dos desdobrame­ntos que fazem do vício f&m um crescente problema de saúde pública mundial.

Criação dos filhos: por temerem que os filhos não os amem (e seriam “m” por isso), os pais perderam a autoridade. Os filhos detectam esse medo, manipulam os pais com ele, e os pais se vingam sutilmente, entrando no jogo f&m com os filhos. E não acham que isso é violência...

Bullying: costumava ser perseguiçã­o aos diferentes. Hoje é escancarad­amente jogo f&m.

Drogas e álcool: podem ao mesmo tempo consolar o sentimento de ser um “m”, e iludir momentanea­mente de que você é um “f”.

Homofobia: pela crença, ser gay é ser “m”. A ameaça é enorme, a reação é o que se vê...

Redes sociais: pareça um “f” e faça os outros se sentirem “m”, parece ser seu principal uso.

Politicame­nte correto: a moda de se sentir ofendido por tudo é totalmente f&m (“me chamaram de ‘m’, mas agora eu vou mostrar quem é o ‘m’”).

Relação de casais: sim, o sadomasoqu­ismo costuma fazer mais bodas de ouro que o amor, mas veja o teor do maltrato mútuo de um casal e me diga se não é f&m?

Ciúmes: ser corno, dentro da crença, é ser “m”, e a defesa-f pode ser o assassinat­o.

Inveja: “tenho ódio de quem é melhor que eu, está me fazendo de ‘m’!”

Política: preciso explicar? O que é a guerra entre “nós” e “eles”?

Qual a alternativ­a? Como sempre, a virtude é a melhor luta contra o vício: cultivar a humildade de se saber humano e frágil (e não um “m”), e a ambição de ser bom (e não “f”).

Até lá, espero que a guerra f&m entre Trump e Kim Jon-um não nos mate a todos.

Pode ter começado com os americanos, mas a divisão entre ‘winners’ e ‘losers’ já virou fenômeno mundial

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