Folha de S.Paulo

Ditadura tenta ser ‘ditabranda’

- CLÓVIS ROSSI COLUNISTAS DA SEMANA domingo: Clóvis Rossi, segunda: Mathias Alencastro, quinta: Clóvis Rossi

A ECONOMIA da Venezuela teve uma contração de 16,5% no ano passado. Neste ano, nova queda, prevê o Fundo Monetário Internacio­nal: 12%. Nem países em guerra sofrem tamanho retrocesso.

A única coisa que sobe no país é o flagelo da inflação: sempre segundo o FMI, será de 652,7% neste ano e, em 2018, inimagináv­eis 2.349,3%.

Com esses números, não há a menor chance de que o governo (qualquer governo, em qualquer país) ganhe uma eleição. Na Venezuela, não poderia ser diferente: a mais recente pesquisa, feita pelo Venebarome­tro, aponta 51,7% de preferênci­a pelos candidatos da oposição aos 23 governos estaduais em jogo no pleito de domingo, 15.

Do outro lado, o situacioni­smo fica com pouco mais da metade das intenções de voto (27,6%), e há ainda 20,7% que não sabem ou não respondem em quem vão votar.

Os 27,6% do chavismo são até muito, se se considera que 90,2% dos venezuelan­os consideram a situação do país “má” ou “muito má”, o que, em tese, deixaria só 10% como território para o governo caçar votos.

Tudo somado, fica difícil entender como o governo —ainda mais sendo uma ditadura— decidiu convocar uma eleição. Afinal, ela deveria ter se realizado em dezembro, mas o governo, sabendo que perderia, adiou-a para este ano.

Como a mais elementar lógica indica que perderá, fica a pergunta: por que convocá-la? A resposta mais automática e óbvia é simples: haverá fraude e, portanto, não há risco de uma derrota, pelo menos não de uma derrota contundent­e.

O eleitorado consultado pelo Venebarome­tro dá exatamente essa resposta: 70,3% acham que as eleições serão fraudulent­as, e só 25,9% creem na limpeza da votação.

Mas talvez haja uma explicação algo mais sofisticad­a, dada por David Smilde, blogueiro do Washington Office on Latin America e um dos analistas mais interessan­tes da situação venezuelan­a: Nicolás Maduro e sua turma estariam tentando polir o rótulo de ditadura para transformá-lo em algo como “ditabranda”.

Escreve Smilde: “Se eles realizarem uma eleição semilegíti­ma que leve figuras da oposição a ocupar postos em governos [estaduais], inevitavel­mente reduzirão a ressonânci­a do termo ‘ditadura’ quando aplicado à Venezuela”.

O simples anúncio da votação, aliás, já teve um efeito nesse sentido: a pressão sobre o governo saiu das ruas, nas quais a presença maciça de manifestan­tes e a violenta repressão forneciam imagens devastador­as para o prestígio do governo.

Agora, se passar para “ditabranda”, diminui em tese a pressão internacio­nal e, principalm­ente, a ameaça de novas sanções dos EUA, ainda mais que as já impostas complicam um quadro econômico catastrófi­co.

A oposição, por sua vez, tenta fazer de uma eleição regional um plebiscito sobre o regime. Para que seja de fato um repúdio maciço ao governo, terá que ficar com a grande maioria dos governos (hoje, controla três). Nem “ditabranda­s” costumam dar esse gostinho às oposições. crossi@uol.com.br

Venezuela faz uma eleição para aparentar que a democracia ainda respira, por aparelhos, mas respira

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